É urgente avaliar e cortar as renúncias fiscais
Ler resumo da notícia
A situação das contas públicas brasileiras não é boa. Longe do apocalipse, o quadro brasileiro ainda é maculado por déficits públicos elevados, sobretudo quando incluída a conta de juros da dívida pública.
Em relação ao PIB, o déficit nominal (todas as receitas menos todas as despesas) encerrou 2024 em R$ 1 trilhão ou 8,5% do PIB. Os Estados Unidos, por exemplo, têm déficit total de 6,4% do PIB. A dívida bruta brasileira atingirá mais de 80% do PIB até ao término do atual mandato presidencial, conforme nossas projeções na Warren Investimentos.
Recomenda-se um ajuste fiscal mais completo.
Alternativamente, o compromisso isolado com as metas do Novo Arcabouço Fiscal, usadas também as chamadas bandas inferiores, não representaria um cenário de deterioração, mas, possivelmente, de perda de oportunidade para restabelecer as condições macroeconômicas favoráveis ao aumento do investimento e do crescimento, na presença de juros civilizados.
Em parte, o Ministro da Fazenda Fernando Haddad já endereçou uma série de questões, principalmente pelo lado das receitas, que cresceram a quase 10% acima da inflação em 2024.
A saber, o governo revisou o iníquo benefício duplo proporcionado pelos subsídios do ICMS descontados do lucro na hora do recolhimento de tributos federais, aprovou a lei das transações tributárias, recriou o voto de qualidade no Carf (contencioso administrativo tributário federal), passou a tributar os fundos fechados e as offshores, limitou o uso indiscriminado das compensações tributárias e resolveu a questão da chamada tese do século.
Por outro lado, resta ainda avançar sobre os subsídios e gastos em geral. O objetivo deveria ser a retomada de superávits primários. Os ganhos para o país seriam imensos: queda dos juros, aumento dos investimentos, controle inflacionário e dólar estável e previsível. Essas condições macroeconômicas são essenciais ao crescimento econômico.
O Senador Renan Calheiros fez um discurso relevante ao assumir, na semana passada, a Presidência da CAE (Comissão de Assuntos Econômicos) do Senado Federal, cargo que exercerá por dois anos. Propôs a revisão e a racionalização dos gastos públicos. Particularmente, falou sobre a necessidade de cortes nas renúncias tributárias. Se avançar, essa agenda terá o condão de resolver parte graúda dos problemas fiscais brasileiros.
Logo que assumi a diretoria-executiva da IFI (Instituição Fiscal Independente) do Senado Federal, em 2016, decidi colocar esse tema dos gastos tributários na agenda de trabalhos. Josué Pellegrini, membro da equipe e, em seguida, também diretor da IFI, produziu diversas avaliações sobre as renúncias fiscais.
Aliás, a IFI, vale dizer, surgiu a partir de uma iniciativa do senador José Serra, por sua vez abarcada pela chamada Agenda Brasil, conjunto de propostas sob a batuta do então presidente do Senado Renan Calheiros. Fazia parte dessa agenda, também, a criação de um limite tendencial para a dívida pública, que infelizmente não prosperou.
O tema das renúncias tributárias é alvo de análises importantes da academia, das áreas técnicas dos governos e da opinião pública, em geral. A dimensão alcançada por esses gastos tributários é gigantesca e pressiona a dívida pública.
Não se deve demonizar as renúncias fiscais. Várias delas podem exercer um papel importante na geração de emprego e renda e no estímulo a setores produtivos centrais ao desenvolvimento econômico nacional. A questão é avaliar tudo.
Vamos entender: um benefício fiscal é estipulado sem critérios técnicos, estudos e, pior, sem data para acabar. Acumulam-se, assim, centenas de bilhões de reais em recursos públicos deixados na mesa, que poderiam servir ao objetivo de reequilibrar as contas públicas.
Segundo o último DGT (Demonstrativo de Gastos Tributários), documento que acompanha a proposta para o Orçamento de 2025 (ainda em tramitação no Congresso Nacional), as renúncias tributárias somarão R$ 544,5 bilhões ou 4,6% do PIB em 2025. Os dados por função orçamentária (uma forma de classificar os indicadores do Orçamento geral) mostram que Comércio e Serviços ficarão com R$ 128,7 bilhões desse montante, com destaque ao Simples Nacional. Em segundo lugar, a Agricultura, com um naco de R$ 95,9 bilhões. Em terceiro lugar, a Saúde, com R$ 88,4 bilhões.
No caso da Agricultura, é importante registrar que, além das renúncias tributárias, a área conta com subsídios creditícios, notadamente por meio do chamado Plano Safra, alvo de debates no fim da semana passada, em razão da antecipação de liberações em contexto de não aprovação do Orçamento. Os subsídios creditícios precisam, igualmente, de uma boa revisão, fundamentada em estudos técnicos, avaliações independentes e análises econômicas a sério.
Não se deve cair no erro de jogar fora o bebê com a água suja do banho, repito. Mas já passou da hora de se promover um escrutínio dessas desonerações, isenções, regimes especiais e toda sorte de renúncias.
Em São Paulo, quando fui secretário da Fazenda e Planejamento, criamos indicadores para avaliar os benefícios tributários e deixamos pronta uma norma para criar comitê de avaliação no âmbito da Fazenda. Na prática, já trabalhávamos com avaliações por meio de reuniões periódicas, aliás, em paralelo à estruturação desses mecanismos de avaliação. Foi importante, nesse aspecto, a interação com o TCE-SP (Tribunal de Contas do Estado).
As duas resoluções editadas em 2022 foram a SFP-51, de agosto de 2022, e a SFP-78, respectivamente, para estipular diretrizes ao processo de tramitação e análise de benefícios tributários e estruturar a assistência técnica vinculada ao gabinete do secretário da Fazenda. Em 2023, a SFP-69, já na gestão do Governador Tarcísio, criou a CABT - Comissão de Avaliação de Benefícios Tributários, proposta que entreguei nas mãos do Secretário Samuel Kinoshita no final de 2022, no âmbito da transição.
Além dos normativos, reforçamos a estrutura do DEPT (Departamento de Estudos de Política Tributária), órgão vinculado à subsecretaria da Receita Estadual. No DEPT, os economistas da carreira dos Auditores Fiscais foram reunidos para pensar nos indicadores de avaliação e organizar os bancos de dados disponíveis.
Isso ocorreu entre abril e dezembro de 2022. Cito como exemplo para concluir que, havendo uma diretriz clara por parte do governo federal, é possível, também, avançar na direção correta da revisão dos benefícios fiscais. O governo tem estruturas e servidores à altura desse desafio. A proposta de Calheiros é tempestiva e vem em boa hora.
Aliás, a Emenda Constitucional nº 109, no seu artigo 4º, da lavra do ministro Paulo Guedes, já estipulava a obrigatoriedade da revisão dos benefícios tributários. O projeto de lei com as propostas de redução foi enviado ao Congresso pelo governo anterior. Contudo, o texto foi devidamente engavetado.
Adicionalmente, o mesmo dispositivo da referida emenda determina que lei complementar tratará de definir regras gerais para os gastos tributários. Até hoje, nada. A ex-senadora Lúcia Vânia chegou a propor um regramento geral para o tratamento dos benefícios tributários. Seria fundamental resgatar esse projeto.
A expectativa é que o impulso dado por Calheiros, liderança experiente e conhecedor dos temas econômicos, possa colaborar para que o governo promova um ajuste relevante nos gastos tributários. As benesses em vigor são numerosas e volumosas. Temos de separar o joio do trigo, nessa matéria, e criar uma oportunidade para as contas voltarem ao azul.
O segundo tempo do mandato presidencial é sempre mais curto, como costumo dizer, em razão das eleições gerais e de como embaralham o meio de campo, aliás, bem antes da data do pleito. Mas, se houver vontade política, tudo pode acontecer.