Corte de gasto e IOF: o erro tático de Haddad
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O ministro Fernando Haddad e a ministra Simone Tebet anunciaram, no dia 22, o aguardado Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias (RARDP) ou simplesmente "relatório bimestral". Trata-se de um evento importante na liturgia do processo orçamentário.
Normalmente, as equipes de secretários das duas pastas apresentam as informações. Desta vez, os dois ministros da área econômica estiveram presentes. O motivo, pode-se inferir, era dar peso ao anúncio e reforçar o compromisso do governo com a responsabilidade fiscal.
O problema é que havia uma pedra no meio do caminho e, curiosamente, fora colocada pelo próprio governo. A decisão de aumentar o IOF no contexto de apresentação do relatório bimestral foi equivocada sob dois aspectos, essencialmente.
Primeiro, porque a Constituição determina que o IOF é um tributo regulatório e não pode ser usado para fins arrecadatórios. Segundo, porque a medida, nas proporções em que foi desenhada, anulou os bons efeitos do maior realismo nos números do Orçamento e do corte de R$ 31,3 bilhões, superior ao esperado para maio.
Para ter claro, eu mesmo calculava que a necessidade de cortes para cumprimento da meta fiscal seria de algo redor dessa monta, mas imaginava que viria por partes. Logo, a notícia foi bastante positiva e fez preço no mercado, como se diz.
O problema é que a decisão de alterar as alíquotas do IOF, informação vazada à imprensa antes do anúncio oficial, acabou turvando esse quadro benigno. Ao contrário do que foi dito na coletiva à imprensa para detalhamento do relatório bimestral, o decreto presidencial do IOF não continha meros ajustes.
A medida mostrou-se ampla e afetará o crédito para as empresas em geral, as operações de câmbio, seguros e outras. Tanto não é irrelevante ou acessória, que o próprio governo estima arrecadar R$ 20 bilhões em 2025 e o dobro disso em 2026.
A reação foi negativa, e o ministro Fernando Haddad acabou recuando e modificando duas das alterações iniciais voltadas à tributação da remessa de recursos para investimentos no exterior.
Fez bem.
Delfim Netto sempre dizia que um erro mais um erro é igual a dois erros. Teria sido pior bater o pé. Evidentemente, recuos abalam a credibilidade; enfraquecem. Melhor seria ter debatido a minuta de decreto com grupo representativo do mercado e com o Banco Central, que é afetado diretamente, uma vez que a política cambial é de sua responsabilidade.
Medidas econômicas podem, sim, ser validadas com a sociedade e setores representativos afetados. Me lembro de quando, na Secretaria da Fazenda e Planejamento de São Paulo, em 2022, reunimos o setor produtivo, por meio de entidades relevantes, para discutir mudanças em programa de devolução de créditos tributários para os contribuintes.
O debate franco e transparente, de um lado, pautado também pelo apoio dos técnicos da burocracia estatal, me parece ser o caminho mais adequado para medidas dessa envergadura. Agora, Inês é morta. Os ruídos já produziram seus efeitos e, após os ajustes, segue firme a majoração do IOF.
A despeito de a discussão ter se concentrado na parte cambial, da tributação de entradas e saídas de dólares do país, a frente que mais me preocupou foi a da tributação das empresas. A alíquota vai subir de 1,88% para 3,95%. Imaginem o efeito sobre uma operação de crédito qualquer.
A pancada no serviço da dívida das empresas será fortíssima, afetando a indústria e o varejo. Tenho dito que o erro da Fazenda foi tático, porque faltou planejar essas ações de maneira adequada. É preciso notar que a decisão do IOF veio em conjunto com o relatório bimestral, para mostrar que uma receita adicional estava sendo criada e, assim, as metas fiscais estariam garantidas.
Ora, o IOF não é imposto arrecadatório. Além disso, não havia outros caminhos para garantir o compromisso legal com a meta de resultado primário (receitas menos despesas sem contar os juros)? Precisava ser o caminho do encarecimento do crédito e baldes de água fria sobre a já combalida indústria, sem contar os efeitos para o comércio varejista?
O fato é que a peça orçamentária deste ano estava recheada de fumaça, no lado das receitas, como escrevi e falei repetidas vezes. Na Lei Orçamentária Anual, havia R$ 168 bilhões em receitas incertas. A revisão promovida no relatório bimestral foi de R$ 80 bilhões para baixo nessas rubricas. Isso mostra que o irrealismo orçamentário superou qualquer precedente.
O episódio reforça, aliás, a necessidade de uma reforma orçamentária estrutural, como venho defendendo neste espaço. Para a questão da meta de 2025, a revisão para baixo nessas receitas deve ter preocupado a Fazenda, que correu atrás da novidade do IOF para suprir parte do buraco.
Mas o interessante é que as novas projeções de receitas líquidas oficiais para 2025 estão em R$ 2,32 trilhões, pouco acima das nossas, de R$ 2,31 trilhões. Antes, o governo projetava mais de R$ 2,36 trilhões. Nós também revisamos a nossa estimativa anterior, de R$ 2.298 bilhões para o valor acima. Mudança bem mais modesta para incorporar o bom resultado da arrecadação no primeiro quadrimestre.
O ponto que quero destacar é justamente a proximidade dos números. Segundo o governo, sua nova projeção já contempla os R$ 20 bilhões adicionais de IOF. Mas, não parece ser o caso, como se vê. A cara do número é muito mais de uma projeção baseada na evolução da inflação e da atividade, tendo sido a nova gordura de IOF guardada na gaveta como espécie de bônus.
Então, a essa altura, o leitor deve estar se perguntando: qual teria sido, então, a motivação? A resposta está em 2026. Para o ano que vem, o governo tem um pepino para resolver.
O déficit projetado por nós e pelo mercado é maior em relação ao de 2025. Estimamos -0,8% do PIB. A meta é um superávit de 0,25% do PIB. Mesmo que se descontem os precatórios excedentes ao antigo sublimite e que se use a banda inferior (-0,25%, resultando em meta zero, digamos), faltariam ainda algumas dezenas de bilhões de reais para fechar a conta.
A meta precisaria ser alterada em agosto de 2025, momento de envio da Proposta de Lei Orçamentária Anual para o ano que vem, quando ninguém vai engolir um compromisso irrealista. Na presença desses mais de R$ 40 bilhões em IOF para o ano que vem, talvez a meta pudesse ser mantida. Daí o peso político que a decisão tomada de modo atabalhoado, um erro tático evidente, ganhou.
O IOF salvaria a mocinha no final do filme, a meta não precisaria ser alterada e a discussão sobre a necessidade de medidas estruturais de controle de gastos públicos esfriaria, na cabeça do governo. Ledo engano.
O tiro saiu pela culatra, pois não só anulou a boa nova do relatório bimestral, como suscitou especulações sobre objetivos ocultos em matéria de política cambial e de controle de capitais. A busca por arrecadação adicional como se não houvesse amanhã, mesmo sabendo que o IOF é um tributo regulatório, foi um grave erro.
Por fim, nada garante que o volume de receitas adicionais será tão relevante como esperado pelo governo.
As melhores táticas para se alcançar as condições de sustentabilidade da dívida passam pelo enfrentamento do problema fiscal de frente. O gasto público tem de ser contido e o governo atual não quer avançar por esse caminho, infelizmente.
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