Felipe Salto

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Opinião

A inconstitucionalidade das emendas parlamentares

Os artigos 163, 165, 164-A e 166 da Constituição Federal estão sendo desrespeitados pela prática corrente das chamadas emendas parlamentares ao Orçamento Geral da União. Em audiência pública realizada no STF (Supremo Tribunal Federal) organizada pelo ministro Flávio Dino na última sexta-feira (27), especialistas discutiram o assunto.

Convidado para falar no evento, defendi que a sustentabilidade fiscal e a separação de Poderes são prejudicadas pelas emendas parlamentares. Sua correta realização deveria seguir a lógica constitucional do cancelamento de despesas como fonte para novos gastos.

No artigo 165, parágrafo 2º, a Constituição estabelece: "A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, estabelecerá as diretrizes de política fiscal e respectivas metas, em consonância com trajetória sustentável da dívida pública, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento". (Grifos meus.).

Já o artigo 164-A é ainda mais explícito: "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem conduzir suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis sustentáveis, na forma da lei complementar referida no inciso VIII do caput do art. 163 desta Constituição". (Grifos meus.)

O parágrafo único desse mesmo dispositivo especifica: "A elaboração e a execução de planos e orçamentos devem refletir a compatibilidade dos indicadores fiscais com a sustentabilidade da dívida." (Grifos meus.)

Mais claro do que isso, impossível. Onde está a comprovação de que a fixação de emendas parlamentares em níveis ao redor de ¼ da despesa discricionária seria compatível com a sustentabilidade da dívida? Não há, porque as emendas, justamente, inviabilizam o funcionamento da máquina pública e, portanto, qualquer tentativa de produzir indicadores de endividamento sustentáveis, condizentes com a evolução prospectiva da atividade econômica e da capacidade de pagamento do Estado brasileiro.

Vale dizer, o crescimento das emendas parlamentares foi de 700%, entre a média anual de 2016-2017 e o valor observado em 2024, de impressionantes R$ 40 bilhões. Para 2026, já se projetam, no PLDO (Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias), quase R$ 53 bilhões para esse tipo de gasto, dentro de uma despesa discricionária total de pouco mais de R$ 208 bilhões.

Ao lado do comportamento das despesas obrigatórias, o avanço das emendas parlamentares sobre a parte discricionária do Orçamento compromete o alcance da sustentabilidade fiscal, ao arrepio da Constituição. Aliás, no seu artigo 163, ela determina que lei complementar disporá sobre a sustentabilidade da dívida. Isso passou a ocorrer por meio da Lei Complementar nº 200/2023, o Novo Arcabouço Fiscal do ministro Fernando Haddad.

Nela, materializa-se o objetivo da sustentabilidade por meio de dois instrumentos: a fixação de metas de resultado primário anuais e a observação de um limite para os gastos públicos. Até o décimo ano contado da publicação da referida lei, a dívida bruta terá de estabilizar-se como proporção do PIB (Produto Interno Bruto).

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De que maneira, entretanto, seria possível alcançar esse objetivo, se o Legislativo se arvora no direito de comandar o Orçamento, determinando gastos novos sem cancelar outras despesas, agindo como se os recursos públicos caíssem do céu feito maná e fixando obrigações novas dentro do limite de discricionariedade previsto?

Na verdade, o artigo 166 da Constituição é muito claro ao determinar que há pouquíssimas hipóteses para os parlamentares emendarem o Orçamento. Para criar um gasto novo, por meio de emenda, é preciso cancelar outra despesa. Além disso, pode-se emendar a proposta do Executivo para questões de texto e para correção de erros ou omissões. As emendas devem balizar-se pela Lei de Diretrizes Orçamentárias e pelo Plano Plurianual.

Se esse artigo — colocado na Constituição pelo grupo que coordenou a elaboração do Capítulo de Finanças, Orçamento e Tributação, sob a batuta do então Deputado Constituinte José Serra - fosse seguido à risca, não estaríamos assistindo à feira livre em que se transformou o processo de emendas. A Constituição Cidadã é clara: não se pode fabricar despesa sem mostrar como pagar a conta.

Minha proposta é que as emendas sejam, inicialmente, reduzidas à metade e, em seguida, corrigidas de acordo com o espaço existente nas projeções para o gasto discricionário total. Além disso, não cabe qualquer tipo de blindagem ou proteção. Esse é um caminho possível, sem prejuízo de se discutir uma reforma de maior fôlego, a partir do debate da reforma da Lei nº 4.320, de 1964, a chamada Lei Geral de Finanças Públicas.

Para ter claro, a principal razão, a meu ver, pela qual a maior parte das emendas realizadas, sobretudo após a aprovação da chamada impositividade, são inconstitucionais, é o fato de ferirem de morte o artigo 166. Elas atacam frontalmente a lógica do processo orçamentário preconizada pela Carta, em que o Executivo propõe e comanda a execução do Orçamento, e não o Legislativo. Assim, o princípio da separação de Poderes, cláusula pétrea da Constituição, está sendo rasgado por meio dessas despesas parlamentares sem critério.

O artigo 166 é contornado, atualmente, porque os parlamentares usam da chamada reserva de contingência, rubrica prevista desde o envio da proposta orçamentária ao Congresso, para cancelá-la e, em seu lugar, inserir despesas novas referentes a essas emendas individuais, de bancada estadual ou de comissão. Trocando em miúdos, não se cancela, de fato, uma despesa anteriormente prevista, mas uma fumaça posta estrategicamente para ser usada pelo Legislativo.

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A atuação do Ministro Flávio Dino deve ser louvada. A audiência pública está disponível no canal do STF no YouTube e foi extremamente útil para escancarar, tecnicamente, sob o prisma do Direto, da Economia e das Finanças Públicas, o grave problema no tema das emendas parlamentares. Foram ouvidos, também, os advogados da Câmara e do Senado.

O Congresso não só dinamita propostas de aumento da progressividade do sistema tributário e fabrica diuturnamente novos gastos e isenções fiscais, bloqueando as iniciativas importantes do ministro Fernando Haddad, como abocanha volumes estrondosos de recursos públicos para distribuir como se não houvesse amanhã. As notícias dão conta de que, infelizmente, além disso, parte dos recursos sai de Brasília para atender a interesses privados.

Transformou-se o processo orçamentário em uma vergonha nacional. O dinheiro público é tratado como se fizesse parte do caixa de um condomínio de particulares, em que cada um cuida de uma fatia, ao arrepio dos preceitos da impessoalidade, da razoabilidade, da transparência, da prudência e da sustentabilidade.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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