No labirinto dos impostos, um produto nem sempre é o que parece

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Aquele seu amigo que gosta de dizer que cerveja sem álcool não é cerveja pode ter alguma razão. Pelo menos, do ponto de vista tributário.
A cerveja sem álcool encontrou um caminho alternativo para evitar tributações mais altas: em vez de ser classificada como cerveja, passou a ser enquadrada como "bebida não alcoólica" ou "refrigerante", diminuindo a carga de impostos.
Isso é possível porque muitas empresas recorrem à reclassificação tributária, um mecanismo legal para tentar reduzir sua carga fiscal.
Diante da complexidade e da falta de clareza na Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), companhias ajustam a classificação de seus produtos para tentar minimizar tributos federais e estaduais, como o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
Um dos casos mais emblemáticos envolve o Bombom Sonho de Valsa, da Lacta. Tradicionalmente classificado como chocolate, o produto foi reclassificado como "wafer" por conta de sua estrutura em camadas, resultando em alíquotas reduzidas. O mesmo raciocínio se aplica a biscoitos recheados: algumas marcas passaram a enquadrá-los como "wafers", categoria que possui menor tributação.
Outro caso que gerou debate foi o Toddynho, popular achocolatado líquido. Sua tributação varia conforme a definição adotada: se considerado "lácteo", a carga tributária muda em relação à classificação como "bebida pronta". Em alguns estados, essa distinção impacta diretamente o ICMS.
Outros casos:
- Leites fermentados, como o Yakult, que em alguns casos foram reclassificados como "suplementos alimentares".
- No setor de cosméticos, algumas empresas buscaram reclassificar protetores solares com alto fator de proteção como "medicamentos", aproveitando isenções ou alíquotas reduzidas em certos estados. Apesar das vantagens fiscais, essa estratégia gerou polêmica, pois a classificação pode influenciar aspectos regulatórios e de comercialização.
- O panetone foi objeto de disputas fiscais, com algumas empresas defendendo sua classificação como "pão doce" - o que resultaria em menor ICMS -, em vez de "confeito".
- No setor moveleiro, fabricantes de móveis montáveis passaram a classificar peças desmontadas como "componentes", evitando tributações mais altas aplicadas a móveis prontos.
Custo Brasil
O que parece só uma questão pitoresca embute, em seu pano de fundo, tem como consequência preços mais caros para o consumidor final.
"Alguns estudos apontam que 95% das empresas podem estar pagando mais impostos do que deveriam. É uma estimativa que parece muito alta, mas tem respaldo na realidade. Há um emaranhado de regras e classificações que muitas vezes faz o empresário preferir recolher mais do que ele teoricamente teria direito para evitar o risco de uma autuação", disse à coluna o advogado tributarista Márcio Zamboni.
Ele cita como exemplo da complexidade a montagem de um motor que dependa de centenas de peças diferentes. Cada uma delas com um código diferente da Nomenclatura Comum do Mercosul e do CST (Código de Situação Tributária), que é utilizado no Brasil para classificar a tributação dos produtos e serviços em relação ao ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).
O CST indica qual regime tributário se aplica a uma determinada operação, levando em consideração fatores como origem do produto, substituição tributária e benefícios fiscais. Segundo Zamboni, analisar e enquadrar corretamente cada item para tributar corretamente é uma tarefa complicada que deixa de ser feita pelas empresas.
"O custo de não fazer isso é bem maior e não recai apenas sobre a empresa, mas também sobre o restante da sociedade, já que o imposto pago a mais indevidamente acaba sendo repassado ao consumidor", afirma.
Emaranhado de decisões
A reclassificação tributária, como nos casos mais famosos, é um dos caminhos que chama mais atenção porque geralmente envolve marcas conhecidas, mas as empresas são mais afetadas por mudanças na jurisprudência dos tribunais superiores ou do CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), um órgão colegiado vinculado ao Ministério da Fazenda, responsável por julgar, em segunda instância, recursos administrativos relacionados a tributos federais.
Além de checar se mercadorias estão corretamente enquadradas no CST e na NCM, especialista afirma que as empresas façam revisões tributárias periódicas para analisar se os seus pagamentos estão em conformidade com decisões de tribunais, como a famosa "tese do século", que, em 2021, decidiu pela exclusão do ICMS da base de cálculo da contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins).
O sentido da decisão foi que o ICMS cobrado pelos Estados não poderia ser calculado, para fins de pagamento das duas contribuições sociais, como receita ou faturamento das empresas.
O PIS e a Cofins são contribuições sociais que incidem sobre a receita ou o faturamento das empresas, nos termos do art. 195, I, "b" da Constituição Federal, podendo ser cobradas sob sua sistemática cumulativa, principalmente com base na Lei 9.718/1998, ou sob o seu regime não cumulativo, conforme as Leis 10.637/2002 (para o PIS não cumulativo) e 10.833/2003 (para a Cofins não-cumulativa).
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