Novos santos declarados por Francisco marcaram guinada política na Igreja

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Durante os doze anos de seu pontificado, o papa Francisco declarou mais santos novos do que qualquer de seus antecessores.
Entre 2013 e 2025, o líder da Igreja canonizou 942 pessoas - número recorde na história do catolicismo e quase o dobro dos 483 santos proclamados por João Paulo 2º (1978-2005), seu antecessor mais prolífico nesse campo.
O número de canonizações do argentino, contudo, é inflado por uma canonização de mais de 800 vítimas do massacre pelos otomanos ao então Reino de Nápoles, na Idade Média.
Distintos na visão de mundo, os dois líderes mais carismáticos da histórica recente do catolicismo - João Paulo 2º e Francisco - usaram politicamente a prerrogativa de declarar santos em prol da sua agenda à frente da mais antiga multinacional em atividade no planeta.
Mais do que gestos de devoção, as canonizações promovidas por cada papa refletem a visão pastoral e política sobre o papel da Igreja no mundo. Este texto detalha como funciona e quanto custa um processo de canonização.
No curso do pontificado de Francisco, o Brasil ganhou dois novos santos: José de Anchieta (1534-1597), um jesuíta cujo processo de santificação demorou mais de 400 anos para ser concluído, e a baiana Maria Rita Lopes Pontes (1914-1992) que ganhara fama de santa viva ao dedicar a vida aos miseráveis de Salvador. Desde sua canonização em outubro de 2019, Irmã Dulce passou a se chamar Santa Dulce dos Pobres.
Entre os primeiros atos simbólicos de seu pontificado esteve a canonização dos 813 mártires de Otranto, em 2013 — um grupo de católicos mortos por invasores otomanos no século 15, cuja proclamação serviu de afirmação histórica, mas sem maior controvérsia política.
A guinada viria com o tempo, à medida que o papa dava prioridade a figuras antes marginalizadas pela burocracia vaticana, como o arcebispo Óscar Romero, de El Salvador. Vítima de uma campanha de difamação, o jesuíta Romero foi erroneamente associado à Teologia da Libertação, vertente de esquerda do catolicismo, nos últimos anos de sua vida.
Assassinado em 1980 por um esquadrão da morte ligado à ditadura militar salvadorenha, Romero era tido como símbolo da resistência aos regimes autoritários da América Latina.
A causa de Romero ficou paralisada durante décadas pelos papas João Paulo 2º e Bento 16, sob o argumento de que seu engajamento em defesa dos pobres poderia associá-lo à esquerda revolucionária.
Para João Paulo 2º, cuja experiência como prelado nascido em um país da Cortina de Ferro repercutiu profundamente em como o polonês moldou a política externa do Vaticano à sua convicção anticomunista, deixar o processo de Romero andar equivaleria a elevar a Teologia da Libertação aos altares da Igreja.
Pesos e medidas de cada papa
Durante seu pontificado, João Paulo 2º foi o primeiro a transformar a canonização em uma ferramenta de afirmação política e diplomática da Igreja Católica. Em 1983, ele reformou o processo de santificação com a constituição apostólica Divinus Perfectionis Magister, simplificando etapas e reduzindo a exigência de milagres — o que acelerou significativamente o número de proclamações.
Essa mudança abriu caminho para que a Congregação das Causas dos Santos funcionasse em ritmo quase industrial: em 26 anos, João Paulo 2º canonizou 483 pessoas e beatificou outras 1.338, mais do que todos os outros papas do século 20 juntos.
As cerimônias, muitas vezes realizadas em viagens internacionais ou transmitidas em massa pela TV, ampliavam o alcance da Igreja e reforçavam sua presença nos cinco continentes, num momento em que o papa polonês liderava a luta ideológica contra o comunismo e buscava reaproximar fiéis em regiões afetadas pelo secularismo ou por regimes hostis à fé cristã.
A escolha dos novos santos não se dava ao acaso: refletia prioridades pastorais e geopolíticas do pontífice.
Canonizações em países do Leste Europeu sob regimes comunistas, por exemplo, ajudavam a sustentar a resistência católica frente às ditaduras marxistas, como no caso do padre Jerzy Popiełuszko, na Polônia, torturado e morto em 1984, aos 37 anos.
Como no caso de Romero, o assassinato de Jerzy Popiełuszko era incontroversamente político, mas o polonês foi declarado mártir "in odium fidei" (do latim, "por ódio à fé") por João Paulo 2º, reconhecimento negado ao salvadorenho.
Além disso, ao elevar aos altares figuras alinhadas com valores conservadores, como Madre Teresa de Calcutá ou o fundador da Opus Dei, Josemaría Escrivá, João Paulo 2º também deixava clara sua oposição à Teologia da Libertação e a setores mais progressistas do clero, consolidando uma identidade doutrinária mais rígida no seio da Igreja.
A máquina de santidade montada por João Paulo 2º foi herdada por Francisco e usada por ele para fazer rodar sua própria agenda, abandonando uma posição política predominante desde a Guerra Fria.
Francisco destravou o processo de Romero, que correu a toque de caixa. Em 2015, ocorreu a beatificação, etapa que precede a canonização no processo canônico, como mártir "in odium fidei". Três anos depois, Francisco declarou-o santo mártir.
A própria canonização de João Paulo 2º — festejada com entusiasmo pela ala conservadora da Igreja — foi moldada por Francisco com uma sinalização política: o papa argentino decidiu canonizar, na mesma cerimônia, João 23, o pontífice que convocou o Concílio Vaticano 2º e é lembrado por abrir as portas da Igreja ao mundo moderno.
João 23 foi canonizado sem a comprovação formal de um segundo milagre, como exige a norma canônica, numa espécie de compensação histórica à santificação do papa polonês.
Os brasileiros
As escolhas de Francisco escancararam o uso das canonizações como plataforma de afirmação de valores e rumos eclesiais.
A beatificação de Irmã Dulce, em 2011 por Bento 16, foi convertida em canonização em 2019, colocando nos altares a imagem de uma mulher brasileira e consagrada pelo trabalho junto aos pobres e doentes — arquétipo perfeito da Igreja como "hospital de campanha", metáfora recorrente do atual pontífice.
Francisco também utilizou com frequência o instrumento da canonização equipolente, que permite reconhecer a santidade de uma figura histórica sem exigir a comprovação formal de milagres — mecanismo usado, por exemplo, para canonizar José de Anchieta em 2014.
O jesuíta, figura central da colonização portuguesa no Brasil e da evangelização dos povos indígenas, teve sua causa paralisada por mais de quatro séculos. Sua canonização representou tanto um tributo à missão da Igreja na América Latina quanto uma reparação simbólica à Companhia de Jesus, alvo de perseguições sob pontificados anteriores.
Ao ampliar o escopo das canonizações, Francisco também mostrou sensibilidade ao clamor popular e à diversidade global do catolicismo.
Seus santos são africanos, asiáticos, latino-americanos, leigos, mulheres, indígenas. Trata-se de um esforço deliberado de universalizar os altares — e, por consequência, as referências espirituais e morais da fé católica.
Nesse sentido, o papa transformou a "fábrica de santos" do Vaticano em um instrumento diplomático e teológico de reafirmação do projeto pastoral de uma Igreja menos dogmática e mais próxima dos pobres, dos marginalizados e dos que sofrem.
Num tempo de conflitos culturais e erosão da autoridade religiosa tradicional, a santidade proclamada por Francisco se tornou também uma forma de dizer ao mundo o que importa na sua visão social do papel da Igreja — e para quem a Igreja deseja abrir suas portas.
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