Graciliano Rocha

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Reportagem

'Nunca falsifique documentos', diz novo código de ética das Americanas

O novo código de ética e conduta das Americanas proíbe os empregados da empresa de falsificar documentos, maquiar dados contábeis ou distorcer a natureza das transações comerciais com fornecedores.

"Nunca falsifique documentos ou neles insira qualquer informação que comprometa seu valor documental", diz uma das normas internas do capítulo 12, dedicado aos registros financeiros e empresariais.

Em outro ponto do texto, no capítulo 13, que recebeu o título "Manipulação de Dados", o código assevera: "A manipulação de informações e/ou resultados não será permitida em hipótese alguma".

O documento de 46 páginas foi aprovado no mês passado pelo conselho de administração e sua versão atualizada foi tornada pública ontem à noite, no site da CVM (Comissão de Valores Mobiliários). A íntegra do documento pode ser consultada aqui.

Do ponto de vista jurídico, a existência de um manual é secundária: falsificar documentos ou inserir neles declarações falsas já constitui crime de falsidade ideológica, previsto no art. 299 do Código Penal, sujeito a pena de até cinco anos de reclusão e multa.

Da mesma forma, quaisquer livros, relatórios ou contratos que embasem a contabilidade de uma companhia aberta devem refletir a realidade dos fatos, sob pena de responsabilidade penal para administradores e demais envolvidos.

A Lei das S.A. (Lei 6.404/1976) exige escrituração íntegra e fidedigna e proíbe a divulgação de demonstrações que deturpem a situação patrimonial ou os resultados da empresa; quem manipula números incorre também em infração administrativa perante a CVM, com multas e inabilitação. Em suma, maquiar balanços e falsificar registros é ilícito independente de qualquer código interno — o manual apenas reforça obrigações já impostas pela legislação.

Mas estas questões não foram parar no novo código de ética das Americanas por acaso.

Durante anos, as Americanas esconderam despesas financeiras, maquiaram balanços e geraram lucros artificiais na mais ampla fraude corporativa já descoberta na história das empresas de capital aberto do país. Em janeiro de 2023, quando vieram à tona as "inconsistências contábeis" - eufemismo para a prática fraudulenta de deixar de lançar em balanço despesas ao menos R$ 20 bilhões em dívidas -, a empresa pediu recuperação judicial. Mais tarde, a auditoria realizada cravou em R$ 25,2 bilhões o tamanho da fraude no final daquele ano.

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Os acionistas de referência - os bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira - têm reiterado desde então que também foram enganados pela antiga diretoria e que não tinham conhecimento das fraudes.

Do ponto de vista criminal, o caso ainda está muito longe do desfecho. O ex-CEO da companhia, Miguel Gutierrez, foi denunciado junto com outros 12 ex-dirigentes do conglomerado. Ao menos dois participantes da fraude viraram delatores e acusaram a antiga diretoria de ser responsável pela fraude.

Em ocasiões anteriores, como no depoimento por escrito à CPI em 2023, Gutierrez afirmou já chamou de "mentirosa" a versão da atual gestão da companhia segundo a qual os antigos diretores teriam enganado o conselho de administração e os acionistas para ocultar o rombo bilionário.

Quem pagou pelo rombo até agora

Do ponto de vista empresarial, a companhia ainda vai precisar remar muito para se manter à tona. O rombo nas contas, conforme o plano de recuperação judicial aprovado por credores em dezembro de 2023, atingiu R$ 50 bilhões. Parte da dívida, com os bancos, foi transformada em ações e entregues às instituições financeiras e o trio de bilionários se comprometeu a injetar R$ 12 bilhões.

Dívidas trabalhistas (R$ 82,9 milhões) e com micro e empresas de pequeno porte (R$ 180 milhões), que juntas representavam cerca de 0,5% dos débitos inscritos no plano de recuperação judicial, já foram pagas.

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Uma grande parte do fardo, conforme o acordo aprovado por 90% dos votantes da assembleia, coube aos fornecedores: quem tinha até R$ 12 mil de crédito recebeu em 2024. Valores acima disso tiveram "desconto" de 50% para serem pagos em 48 parcelas ou deságio de 70% para pagamento em parcela única em 2039.

Acionistas minoritários também amargaram grande prejuízo: desde a eclosão do escândalo, a ação das Americanas perdeu 98% de seu valor.

A teoria e a prática

Com linguagem acessível e exemplos práticos, o texto do novo código de ética e conduta deixa pouco espaço para ambiguidades, que abrange desde comportamento de funcionários em redes sociais, relacionamento ético com fornecedores e concorrentes até capítulos sobre assédio moral e sexual no ambiente de trabalho.

A existência de um código de ética pode ter efeito jurídico nas relações trabalhistas; o descumprimento de algum de seus dispositivos pode ser usado para justificar demissões, por exemplo.

Na carta de abertura do documento, a alta administração da varejista afirma que "a credibilidade é um ativo inegociável" e destaca que todos os associados da empresa têm o dever de preservar a imagem da companhia e zelar pelo cumprimento da lei.

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O novo código de ética e conduta é um compromisso decorrente do processo de recuperação judicial, sinalizando ao mercado e ao Judiciário que está disposta a implementar uma cultura de integridade real, e não apenas formal. O desafio é fazer o que está escrito valer nas condutas concretas.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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