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José Paulo Kupfer

Não é verdade que falta dinheiro para pagar servidor, como disse Bolsonaro

14/05/2020 16h44

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Já se perdeu a conta de quantas bravatas o presidente Jair Bolsonaro solta nas suas passagens diárias pelos cercadinhos de correligionários e jornalistas, na saída do Palácio da Alvorada, residência oficial do chefe do Executivo brasileiro. Ao ameaçar com falta de dinheiro para pagar o servidor público, em declaração nesta quinta-feira (14), cometeu mais uma dessas bravatas.

Também pode ser incluída naquele grupo das afirmações sem base, a declaração de Bolsonaro segundo a qual "o Brasil está virando um país de pobres". O presidente não apresentou nenhum dado para sustentar o que disse, mas os dados mostram que o Brasil é um país pobre de longa data.

Pelo menos metade dos cidadãos brasileiros, nos dias de hoje, vive com renda média per capita de R$ 413 mensais, nem 40% do salário mínimo. Já o grupo dos 30% mais pobres, cerca de 60 milhões de pessoas, sobrevive com renda mensal de R$ 269.

O contexto das duas declarações de Bolsonaro é a briga com governadores e prefeitos em relação às medidas de isolamento social decorrentes da propagação do contágio e das mortes causadas pela Covid-19. O presidente pode até querer suspender ou reduzir os salários dos servidores federais. Resta saber se conseguirá, sem combinar com os demais Poderes da República. De qualquer maneira, é certeza certíssima de que não faltaria dinheiro para cumprir a folha de pagamento do funcionalismo federal.

Apesar das ameaças sacadas volta e meia por governantes e políticos que não querem aumentar os gastos públicos, Estados não quebram e, a rigor, a eles jamais faltarão recursos. Se a arrecadação de tributos não cobre o total de gastos, Estados podem recorrer ao endividamento público para atender a despesas consideradas imprescindíveis.

Nem mesmo países encrencados com dívidas públicas em moeda estrangeira, como a Argentina e a Grécia, para lembrar casos recentes, de fato "quebraram". Tanto que estão aí hoje, bem ou mal, tocando a vida. Quando ao Brasil, cujo endividamento em moeda estrangeira é perfeitamente coberto pelas reservas internacionais, e sua dívida pública, ainda que alta, é denominada em moeda local, a situação pode não ser tranquila, mas é administrável.

Há, com certeza, limites para o endividamento público. Em resumo e de maneira simplificada, o limite é dado pela capacidade de colocar títulos públicos no mercado. Quanto maior a quantidade de papéis públicos em circulação, maior terá de ser a taxa de juros paga para atrair investidores.

Mas esse limite é elástico e, em grande medida, depende do grau de necessidade da despesa que pressionará a dívida pública. Quando mais indispensável ou inevitável for a despesa, maior será a flexibilidade com o endividamento. Por isso mesmo, diante de catástrofes naturais, afetando inesperadamente populações inteiras, não é um argumento aceitável, para nenhum governante, alegar falta de recursos no enfrentamento imediato dos efeitos da tragédia.

Um caso atual e bastante elucidativo é o da exigência de gastos públicos em volume sem precedentes, como parte das estratégias para enfrentar a pandemia da Covid-19. A exigência de restringir a circulação de pessoas, como forma de evitar o contágio e o colapso do sistema de saúde, agravando a ocorrência de mortes, provocou um abrupto, inédito e simultâneo choque negativo de oferta e de demanda. Para mitigar os impactos da virtual paralisação da atividade econômica, governos mundo afora estão lançando mão de volumes oceânicos de recursos públicos.

Uma das saídas, já testada na crise financeira de 2008, tem sido a "emissão" de moeda pelos bancos centrais. Sob o nome de "quantitative easing" (afrouxamento monetário, numa tradução aproximada), primeiro o Fed (Federal Reserve, banco central americano) e, na sequência, os demais bancos centrais das grandes economias - BCE (Banco Central Europeu), BoE (Banco da Inglaterra) e BoJ (Banco do Japão) - "criaram" dinheiro para dar suporte a bancos, empresas, empregados, trabalhadores autônomos e cidadãos vulneráveis.

A fórmula está em franco curso, em quantidades industriais. Só o Fed já "emitiu" cerca de US$ 2 trilhões, o equivalente a 10% do PIB americano. Em outros países, os recursos públicos tornados disponíveis para o enfrentamento da pandemia somaram, em média, entre 15% e 20% do PIB. Na Alemanha, esse total passou de 30% do PIB.

Nos tempos atuais, "emitir" dinheiro não significa "rodar a guitarra" (ou a "maquininha"), como se dizia antigamente quando algum governo imprimia novos lotes de papel-moeda ou moeda metálica. As "emissões" atuais (daí porque a palavra dever vir entre aspas) são, no fundo, emissão de dívida, via colocação e manejo de títulos públicos.

Nos QE (afrouxamentos monetários), o banco central atua nos mercados secundários de títulos, comprando papéis emitidos pelo Tesouro Nacional, já em poder dos bancos. Ao fazer isso, o banco central registra os papéis comprados nos seus ativos e credita o depósito do banco em seu passivo. Essa reserva bancária, registrada no passivo do banco central, faz parte da base monetária, agora aumentada. A dívida decorrente da colocação dos títulos do Tesouro foi "monetizada".

No Brasil, ao Banco Central não era permitido adquirir papéis do Tesouro no mercado secundário. Mas essa proibição, justamente por causa da pandemia, acaba de ser eliminada com a promulgação da emenda constitucional que resultou da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 10/2020, dita do "Orçamento de Guerra".

Em audiência no Congresso Nacional, nesta quinta-feira (14), o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, reiterou estimativas de um déficit público em 2020 de R$ 600 bilhões a R$ 700 bilhões, equivalentes a 8% PIB ou 9% do PIB. Além do impacto do fortíssimo aumento de despesas, as perspectivas, com o mergulho da atividade econômica, é de perdas de 30% na arrecadação.

Para um país com acentuados desequilíbrios e dívida pública elevada - ela equivale a mais de 70% do PIB e, segundo estimativas, pode chega a 90% do PIB, com os gastos para enfrentar a pandemia, muito acima da média de 50% do PIB das demais economias emergentes - o problema a solucionar depois da possível volta à normalidade será mais complexo do que em países de perfil econômico assemelhado.

Ainda assim, não haverá falta de dinheiro para o que for necessário, se o governo Bolsonaro fizer o que tem de ser feito. Na verdade, com a economia no caminho de uma recessão profunda, talvez um estado de depressão, todo dinheiro será pouco para tentar evitar que a tendência de deflação na economia, com o potencial desorganizador da atividade econômica que embute, se confirme e se instale.