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José Paulo Kupfer

Cortar gasto para evitar colapso do teto é ameaça de colapso de vulneráveis

17/08/2020 19h22

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A regra do teto de gastos, uma das normas com as quais se tenta controlar as despesas públicas no Brasil, voltou à berlinda. Em meio à explosão de recursos governamentais destinados ao enfrentamento da pandemia de Covid-19, críticos e defensores do limite imposto em fins de 2016, se engalfinham com crescente intensidade.

Não deve ser fácil, para quem não acompanha de perto os embates sobre as contas públicas, entender as razões de debates tão acalorados. Mas as motivações de lado a lado são relativamente simples. Sob a capa de uma questão técnica, escondem-se importantes questões políticas e, eis aí a questão de fundo, ideológicas.

De acordo com as regras do teto, as despesas públicas da União só pode aumentar, a cada ano civil, na exata medida da variação da inflação, medida pelo IPCA (Indice de Preços ao Consumidor Amplo), calculado pelo IBGE, no acumulado dos 12 meses iniciados em junho. Embora esse ponto raramente seja explicitamente declarado, o que está em jogo, em resumo, é o tamanho ideal do Estado, para permitir que, no espaços abertos, a iniciativa privada promova o reequilíbrio econômico e a expansão do bem-estar social.

Se bem que não explicitado, a regra do teto não deixa dúvida quanto a esse objetivo. Em qualquer hipótese, salvo situações de calamidade, como se observa agora, as despesas públicas federais só podem subir até o limite da inflação do ano anterior. Assim, nenhum crescimento da economia mudaria essa restrição. A moral da história é a de que, quanto mais a economia vier a se expandir, e mais a inflação permanecer baixa - a melhor situação possível para o ambiente econômico -, mais os gastos públicos, como proporção do PIB, sofrerão contração.

Um grupo de 80 economistas, entre consultores privados, gestores de ativos no mercado financeiro e professores universitários publicou, neste domingo (16), um manifesto em defesa do teto de gastos. O texto reproduz, infelizmente sem as devidas comprovações, os argumentos usados pelos que acreditam ser a austeridade fiscal, uma consequência natural do teto de gastos, a chave para a expansão econômica.

O mais batido e repetido desses argumentos usados pelos defensores da regra é o de que o teto de gastos é o responsável pelos juros básicos baixos. Em meio a um quadro de combina uma forte recessão, no imediato período pré-teto, com uma sequência de baixo crescimento e os impactos da pandemia, a afirmação carece de uma investigação empírica mais aprofundada. Quem garante que os juros baixos não são consequência de uma inflação abaixo do piso do sistema de metas, propiciada pelo baixo crescimento predominante no período?

Recorrentes desde a sua adoção há pouco menos de quatro anos, as disputas em torno do teto de gastos chegaram agora aos gabinetes do governo Bolsonaro. A ala "desenvolvimentista", formada pelo militares do Palácio do Planalto, o ministro da Infraestrutura, Tarcisio de Freitas, e o do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, se contrapõe aos defensores da "austeridade", concentrados no ministério da Economia, e liderados pelo ministro Paulo Guedes.

De sua parte, o presidente Jair Bolsonaro oscila entre os "fura-teto", que é como Guedes e seus aliados apelidaram os defensores, no governo, de uma flexibilização da regra fiscal, para destinação de dinheiro público em investimentos de infraestrutura, e os defensores do teto. Fiel ao estilo de idas e voltas que o caracteriza, Bolsonaro ora se coloca na defesa da manutenção do teto de gastos como desenhado e aprovado no governo de Michel, ora dá sinais - e adota medidas - contrários à preservação intacta da regra de controle fiscal.

A instabilidade do teto de gastos deriva não apenas dos vaivéns na correlação de forças entre "gastadores" e "austeros". Deve-se também à sua grande rigidez, que vai na contramão das recomendações, inclusive do FMI (Fundo Monetário Internacional), para regras de controle fiscal.

De fato, o teto de gastos brasileiro é diferente de seus congêneres internacionais. Nenhum outro, por exemplo, está inscrito como regra constitucional, o que se revela um primeiro elemento de rigidez. Nenhum outro também tem prazo de 20 anos (podendo ser revisto na metade do tempo), pois, em geral, se alinham aos prazos do ciclo político, ou seja, o do intervalo entre eleições presidenciais, quatro ou cinco anos, na maior parte dos casos.

Diferente ainda de outras normas de teto de gastos mundo afora, a regra brasileira do teto não prevê cláusulas de escape. Em grande parte dos outros países, investimentos públicos, por exemplo, conforme determinadas circunstâncias e condições, não são incluídos no cômputo do teto.

Da sua implantação até aqui, a aplicação da regra do teto de gastos tem coincidido com um período de baixo crescimento, pouco superior a 1% ao ano. O baixo crescimento ainda não pode ser considerado consequência da regra restritiva de despesas públicas porque a norma foi concebida para operar com folgas nos primeiros anos. Mas, já se aproximava de um momento da verdade, projetado para 2021 e essa possibilidade foi acelerada pelos gastos com a pandemia.

Manter o teto, a essa altura, exigiria cortes de despesas. É medida arriscada, do ponto de vista tanto econômico quanto social, pois a economia continuará, ainda por um bom tempo, sob os impactos da pandemia, mesmo que o contágio decline nos próximos meses. Para seguir, porém, a recomendação dos autores do manifesto pela manutenção do teto, é preciso "rebaixar o piso de gastos para que o teto não colapse", como determina o título do documento.

Não são poucas as dúvidas a respeito dessa a concreta aplicação da recomendação. Começam pelas pressões por mais gastos dentro do governo, lideradas pelo próprio presidente Bolsonaro, levaram o ministro Paulo Guedes a tentar driblar o teto, sugerindo desviar recursos do Fundeb, fundo destinado à educação, para outras áreas.

O principal, porém, invertendo a ação proposta pelos economistas favoráveis à manutenção do teto, é saber como alcançar esse objetivo sem condenar ao colapso dezenas de milhões de brasileiros vulneráveis, ainda mais fragilizados pelos impactos da pandemia, no mercado de trabalho.