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José Paulo Kupfer

Temor de populismo com dinheiro público faz mercados viverem instabilidades

08/10/2020 04h00

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Responsável pela devastação ambiental que ocorre na Amazônia e no Pantanal, o governo Bolsonaro é também, em conjunto com lideranças do Congresso Nacional, um reflorestador ativo em Brasília, com a "plantação" de notícias para a mídia. A "plantação" ganhou intensidade, nos últimos tempos, com as dificuldades para adoção, na virada de 2020 para 2021, de um programa de renda mínima em substituição ao auxiliar emergencial.

"Plantação", no jargão dos jornalistas, é a informação, ainda em estudo ou menos que isso, apenas aventada, transmitida por autoridades a repórteres, com o objetivo de avaliar sua repercussão junto à opinião pública. Em geral, as "plantações" não passam de balões de ensaio, mas, como as vacinas, que podem pegar ou não, algumas vezes se transformam em medidas oficiais.

A perspectiva de enfraquecimento dos controles das despesas públicas - sobretudo da regra de controle que impôs, em 2016, um teto ao volume total, em termos reais, dos gastos do governo federal - para pôr esse programa de pé ampliou instabilidades já antes presentes nos pregões dos principais mercados de ativos - Bolsa, câmbio e juros futuros. Temores de que ímpetos populistas de Bolsonaro levassem o governo a avançar nas despesas vinham, nas últimas semanas, derrubando as cotações das ações, pressionando a taxa de câmbio e empinando a curva de juros futuros.

Esses temores também refletem uma narrativa que tomou corpo nos meios financeiros, segundo a qual as pressões fiscais, promovidas pelos gastos para enfrentar a pandemia, na área da saúde e da sustentação de vulneráveis, empresas e empregos, jogaram a economia numa trajetória de dificuldades na administração da dívida pública. Altas da cotação do dólar e aumentos dos juros futuros em seu ramo mais longo, não se sabe se numa profecia autorrealizável que o Tesouro Nacional e o Banco Central não estão querendo ou conseguindo estancar, passaram a dar gás ao argumento do risco fiscal. Para eliminar esse risco, seria necessário reafirmar a manutenção do teto de gastos e acelerar reformas que cortassem despesas, permanentemente.

Com as oscilações nos mercados, os sismógrafos políticos em Brasília levaram velhas raposas do Congresso a se mobilizar para conter riscos maiores. O hoje decano dessas raposas, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), por exemplo, que andava meio recolhido, saiu a campo para coordenar a reconciliação entre o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e o ministro da Economia, Paulo Guedes.

As pazes, seladas num jantar, nesta segunda-feira (5), na casa do ministro do TCU (Tribunal de Contas da União), Bruno Dantas, propiciaram declarações de ajuda mútua entre governo e Congresso, na busca de uma solução para assegurar um programa de renda básica, sem deixar Bolsonaro livre para gastar. Foi dessa cartola que saiu a ideia de incluir um "orçamento de guerra", como o que vigorará até o fim deste ano, numa das PECs (Proposta de Emenda à Constituição), que tratam de questões orçamentárias, a do Pacto Federativo e a Emergencial, enviadas por Guedes e ainda dormitando na Câmara.

Essa nova possibilidade, a ser usada, em 2021, de acordo com o argumento que a sustenta, em caso de uma segunda onda de Covid, pode ser mais palatável para os representantes do mercado do que a enxurrada de outras "plantações" lançadas ao ar seco de Brasília para driblar a regra do teto de gastos e dar espaço a um programa de renda básica.

Os pregões de ativos ficaram mais sensíveis quando a equipe de Guedes, em conjunto com o relator do Orçamento de 2021 e das PECs orçamentárias, Marcio Bittar (MDB-AC), anunciou a "solução" do adiamento do pagamento de uma parte dos precatórios federais e o desvio de parte do Fundeb para bancar o programa Renda Cidadã. Considerados como calote e pedalada, as duas ideias jogaram os mercados para baixo e acabaram saindo de cena.

Daí para frente, não houve um dia sem alguma "plantação", pretensamente salvadora do programa de sustentação de renda de Bolsonaro - e sem instabilidades nos mercados. Plantou-se desde a extinção da declaração simplificada de ajuste anual do Imposto de Renda até a prorrogação do decreto de estado de calamidade pública para 2021 e do auxílio emergencial, o que permitiria aumentar despesas públicas fora do teto de gastos, e estender o auxílio emergencial além de dezembro.

Esta última hipótese voltou a derrubar os mercados, nesta quarta-feira (7). Guedes foi rápido e desmentiu, horas depois e categoricamente, a "plantação" da prorrogação do decreto e do auxílio. As cotações se acalmaram na sequência.

No jantar que sacramentou a paz com Guedes, Rodrigo Maia disse que será preciso cortar "no músculo" para viabilizar o ajuste fiscal. Não disse no músculo de quem os cortes terão de ser feitos, nem quais deles serão sacrificados. Ao seu lado, Renan Calheiros propôs extinguir isenções fiscais por um período de avaliação e também limitar os salários dos funcionários públicos ao teto de R$ 39,3 mil mensais, a que têm direito os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal), numa curiosa reposição da regra que é permanentemente burlada nos altos escalões do funcionalismo federal.

As isenções não abrem espaço no teto de gastos, mas o cumprimento da lei que fixa o salário máximo dos servidores federais pouco abaixo de R$ 40 mil por mês, retirando do holerite de funcionários penduricalhos variados, aliviaria o total de despesas federais em R$ 10 bilhões anuais. A medida pode contar com apoio popular, mas esbarra no poderoso lobby do andar mais alto do funcionalismo, além de ser insuficiente, sozinha, para compensar os gastos com o programa de renda permanente de Bolsonaro.

O impasse se deve ao veto de Bolsonaro a que fossem abertos espaços, dentro dos limites do teto de gastos, para inserir seu programa de renda básica, com cortes nos programas sociais já existentes. Essa era a primeira opção imaginada pelo time de Guedes, mas ao vetar "tirar dos pobres para dar aos paupérrimos", sem quebra da regra do teto, o presidente inviabilizou o projeto mais ambicioso da Renda Brasil e agora teve de adiar o Renda Cidadã.

Menor do que o Renda Brasil e muito menor do que o auxílio emergencial, o Renda Cidadã necessita de cerca de R$ 30 bilhões por ano para ampliar o contingente de beneficiários do Bolsa Família de 14 milhões para 24 milhões de famílias, com valores mensais de até R$ 300, praticamente o dobro do benefício médio pago pelo Bolsa Família. Para não furar o teto, esse montante de recursos tem de ser cortado em itens do total de gastos existentes, visto que nenhum aumento de arrecadação é capaz de aliviar o limite de despesas estabelecido em 2017.

O garrote instituído pelo teto de gastos impede que o programa de renda com o qual Bolsonaro sonha turbinar o apoio - e os votos - para 2022, sem cortes em gastos sociais, na Previdência ou nas despesas com servidores federais. Não é por outra razão que Guedes gostaria de desobrigar despesas obrigatórias, com piso constitucional definido, caso da Saúde e da Educação, desvincular gastos dos reajustes pelo salário mínimo e congelar o próprio salário mínimo.

Mas, para Bolsonaro, com razão, isso seria tirar de um bolso para pôr no outro. Para ele, antes de tudo, seria arriscar a perda do apoio que fez subir a aprovação de seu governo, numa ampla camada de eleitores de baixa renda, antes refratária a seu nome. Resultado: também o Renda Cidadã ficou para depois, pelo menos para depois das eleições municipais de novembro deste ano.

No fim da primeira temporada da novela "renda cidadã versus teto de gastos", declarações de que a solução terá de ser encontrada dentro dos limites do teto passaram a ser entoadas como mantra, na tentativa de tranquilizar o mercado. Também Bolsonaro, voltou a afirmar que, em questões econômicas, a última palavra, aquela que de fato vale, é dele ou de Guedes. Tentou acabar com o reflorestamento na Esplanada dos Ministérios, mas é de se duvidar que consiga e que novas "plantações" não estejam germinando nos canteiros do governo e do Congresso.