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José Paulo Kupfer

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Conta em paraíso fiscal: mesmo legal, Guedes e Campos Neto não deviam ter

04/10/2021 18h33Atualizada em 04/10/2021 19h06

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Assim que foi divulgado, neste domingo (3), que o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, mantinham contas em paraísos fiscais, a legalidade ou não da iniciativa produziu um aceso debate nas redes sociais. Logo ficou claro que não haveria ilegalidade, se as contas estivessem devidamente declaradas no Imposto de Renda. Era esse o caso de Guedes e Campos Neto.

O debate, porém, também se estendeu a questões mais complexas, envolvendo conflitos de interesse, Autoridades deveriam ou mesmo poderiam manter recursos aplicados, ainda que legalmente, em contas abrigados em paraísos fiscais. Uma anedota, que viralizou nas redes, expunha o tipo de problema em discussão: "Guedes seria muito estúpido se não blindasse sua fortuna lá fora, considerando o ministro da Economia que temos."

Um ministro da Economia ou um presidente de banco central, pela natureza dos cargos e as implicações de suas decisões, está inevitavelmente exposto a conflito de interesse, se mantém conta, mesmo legal, em paraíso fiscal. É preciso notar, em primeiro lugar, que as contas estão registradas em paraísos fiscais, não são simplesmente contas bancárias ou aplicações no exterior.

Já seria moralmente duvidoso que altos funcionários públicos mantivessem recursos em algum banco ou instituição financeira em outro país mesmo sem "regras especiais" de registro e tributação. Neste caso, bem ou mal, haveria alguma diferença em relação à destinação de recursos a contas, por princípio sigilosas, sem um mínimo de transparência, em locais conhecidos por atrair riquezas por taxar pouco ou mesmo não taxar riquezas, aceitando manobras para esconder os titulares do dinheiro.

Impossível convencer que a escolha de um paraíso fiscal para abrigar uma conta exclusiva não tenha como objetivo manter estrita confidencialidade sobre a remessa de recursos, fugir da tributação no país de residência e reduzir riscos jurídicos ou políticos, inclusive de confiscos e calotes, no país de origem. Quem, mesmo legalmente, abre offshores em paraísos fiscais está se misturando a contrabandistas, traficantes e toda sorte de deliquentes cujos recursos, obtidos à margem da lei, não podem ser declarados.

A existência de contas, representativas de fundos exclusivos, em países com baixa ou nenhuma tributação sobre fortunas, foi denunciada pelo ICIJ (Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos, na sigla em inglês). Sob o nome de "Pandora Papers", a investigação, iniciada há dois anos, envolveu 615 jornalistas, de 149 veículos de imprensa, em 117 países.

A partir do acesso a quase 12 milhões de arquivos confidenciais, foram expostas as chamadas "contas offshore" de 336 políticos, empresários e altos funcionários de 91 países. No Brasil, a investigação alcançou, além de contas de Guedes e de Campos Neto, recursos offshore de 1900 pessoas. Desses, há pelo acionistas majoritários, grandes acionistas ou executivos de pelo menos seis bancos - inclusive de dois dos maiores, Bradesco e Santander.

Não há problema no fato de empresários e executivos mantenham contas offshore em paraísos fiscais, desde que declarados às autoridades fiscais. A lei não faz distinção no caso de banqueiros ou altos executivos de bancos, permitindo a existência desse tipo de contas, desde que informadas às autoridades fiscais. Mas banqueiros não deveriam recorrer ao expediente, uma vez que se apresentam ao público para administrar, no país de residência, recursos de terceiros. Se nem eles confiam, integralmente, em aplicações no país, como podem recomendar aos outros que o façam?

Nas denúncias dos Pandora Papers, há pelo menos seis banqueiros brasileiros. Luís Carlos Trabuco Cappi, hoje na presidente do conselho de administração, mas durante nove anos presidente executivo do Bradesco, encabeça a lista de quatro outros conselheiros e executivos do banco com contas offshore. Também aparece Sergio Rial, presidente do Santander, e mais um executivo do banco. Comparecem ainda acionistas majoritários de bancos menores, como Rubens Menin, do Inter - e também da Construtora MRV e CNN Brasil -, e presidentes ou executivos dos banco Original, Agibank, BRB e Original.

Quanto a altos funcionários de governo, a questão é mais simples. Eles não deveriam ter contas offshore em paraísos fiscais. Para começar, demonstrariam, como banqueiros, não confiar em investimentos no país do qual ocupam posto de relevo no governo - uma atitude, sob qualquer hipótese, politicamente condenável. Quando se trata de autoridades com poder de decisão sobre a economia, a vedação, independentemente de qualquer amparo legal, deveria ser impositiva e compulsória.

Campos Neto informa que encerrou contas offshore e as que ainda mantém não tiveram movimentação desde que chegou ao Banco Central. Guedes se recusou a falar sobre movimentações na conta offshore de US$ 9,5 milhões, que mantém nas Ilhas Virgens Britânicas, paraíso fiscal do Caribe, em conjunto com mulher e filha. Há nuances nos dois casos, mas ambos estão errados e não deveriam manter a titularidade ativa de conta alguma em paraísos fiscais.

Existe uma forma de blindagem para o patrimônio de altos funcionários públicos abrigado em paraísos fiscais. Eles podem constituir um "blind trust" (fundo cego, em tradução livre), um fundo administrado por terceiros, que recebem autorização para operar os recursos sem comunicar suas ações ao proprietário, enquanto este mantiver cargo público e durante o período de quarentena. Foi o que declarou ter feito o atual secretário de Fazenda de São Paulo, Henrique Meirelles, que, antes de ser ministro da Fazenda no governo Michel Temer e presidente do Banco Central, com Lula, foi diretor internacional de bancos, acumulando recebimentos no exterior.

Ainda assim, para altos funcionários de governo, em especial na área econômica e financeira, não é possível escapar dos riscos de exposição a conflitos de interesse. Logo que a notícia foi divulgada, as redes sociais explodiram na acusação ao fato de que Guedes e Campos Neto, com suas contas offshore, ganharam com a desvalorização do real ante o dólar ocorrida no governo Bolsonaro.

Essa acusação específica não faz sentido, não só porque não é possível controlar a esse ponto os efeitos das políticas econômicas, mas até porque são conhecidos os esforços do presidente do BC e do ministro da Economia para evitar altas persistentes do dólar. Indica, porém, a natureza do problema. Guedes e Campos Neto, pelos cargos que ocupam, detêm informação privilegiada sobre questões de política econômica e monetária. Ainda que não movimentem suas contas em paraísos fiscais - o que seria necessário provar em detalhes aos órgãos de controle - estão no centro do problema. Hipóteses de improbidade administrativa não podem ser descartadas.

Reportagem do repórter Fabio Pupo, publicada nesta segunda-feira (4), na versão online da Folha, lembra que Guedes defendeu em julho retirar do projeto de lei do Imposto de Renda a regra que tributaria recursos de brasileiros em paraísos fiscais. Para ele, a discussão complicaria o debate sobre o texto. O argumento do ministro pode ser verdadeiro, mas se ele mantém uma offshore, seria legítimo levantar suspeitas de que poderia estar atuando em causa própria. A taxação de fundos offshore foi retirada do projeto de lei de reforma do Imposto de Renda, aprovada na Câmara e agora em tramitação no Senado.

Além de todo os problemas morais, éticos e funcionais, a manutenção de contas offshore configura evasão fiscal (manobras irregulares para sonegação de impostos ou pelo menos elisão fiscal (uso de brechas legais para pagar menos tributos). Cálculos da Tax Justice Network, rede internacional de especialistas de combate à sonegação fiscal, de novembro de 2020, indicam que US$ 15 bilhões deixam de ser arrecadados por ano, no Brasil, por elisão ou evasão fiscal.

No ranking das democracias ocidentais em que há mais desvios, o Brasil ocupa o quinto lugar, atrás apenas de Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha e França. O valor anual que deixa de ser recolhido equivale a 20% do orçamento da Saúde e a 12,5% do orçamento da Educação. O total de tributos desviados no mundo, de acordo com o levantamento da Tax Justice Network alcança US$ 427 bilhões, dos quais 60% são responsabilidade de empresas e 40% de famílias ou pessoas físicas.