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Tirar todas as crianças da pobreza custaria R$ 80 bi/ano, diz especialista
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O desenvolvimento social e emocional da faixa de zero a seis anos é crucial para que o país consiga crescer mais e mais rápido e, assim, possa reduzir em menor intervalo de tempo as enormes manchas de pobreza e de desigualdade social, que são indesejáveis características de sua sociedade. Essa é a tese que o economista Naercio Menezes Filho, professor titular no Insper e livre docente na USP defende no debate público e desenvolve em seu trabalho acadêmico. Especialista em educação, mercado de trabalho, produtividade e desigualdade, Menezes Filho também é diretor do CPAPI (Centro Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira Infância).
O economista se filia a uma corrente de especialistas, na qual se destaca o americano James Heckman, ganhador do Nobel de Economia de 2000. Essa corrente atribui peso primordial aos eventos da primeira infância no desenvolvimento dos indivíduos, e, partir daí, das economias como um todo e das sociedades em geral. Os estudos dessa linha de pesquisas e de formulação de políticas públicas reúnem conhecimentos não só de economia, mas de medicina, neurociências e psicologia, numa abordagem abrangente das teorias do capital humano.
De forma simplificada, a ideia é a de que o investimento na primeira infância propicia os maiores retornos em termos de capital humano. O desenvolvimento físico, social e emocional das crianças pequenas determina em boa medida os níveis de produtividade futura da economia e, portanto, a sustentação do crescimento econômico e do bem-estar social.
É nas famílias mais pobres que se encontram maiores dificuldades para desenvolver, adequadamente, essas capacidades. Daí por que não só é moral e eticamente desejável desenvolver políticas públicas para superar barreiras nesse grupo específico, como é do investimento nas crianças pequenas, de acordo com essa corrente, que resultará o maior retorno em termos de capital humano. Vale lembrar que parte de um programa de US$ 1,8 trilhão, equivalente a 1% do PIB, elaborado pelo governo Biden, que está travado no Senado depois de aprovado na Câmara, se destina justamente a apoiar famílias com crianças pequenas.
No Brasil, são quase 20 milhões de crianças de zero a seis anos, das quais cerca de um terço, ou pouco mais de 6 milhões, vivem em famílias pobres. Dessas, outro terço, um grupo de quase 2,5 milhões de crianças, vivem em lares sem nenhum tipo de proteção do Estado.
Um levantamento, com dados populacionais de 2020, no Ceará, mostrou que 18% das crianças tinham algum atraso em seu desenvolvimento. Nos Estados Unidos, um experimento no qual um grupo de mães pobres, que acabaram de ter filhos, passou a receber transferências adicionais de renda, enquanto um outro grupo de mães recebia as transferências normais. Um ano depois, os pesquisadores registraram aumento na atividade cerebral, nas áreas responsáveis pelas habilidades cognitivas, nas crianças cujas mães receberam transferências adicionais.
É possível, segundo Menezes Filho, desenhar e executar, no Brasil, um programa de transferência de renda, com foco na retirada da pobreza de famílias pobres com crianças pequenas, a custo viável. Para tirar famílias sem filhos pequenos da extrema pobreza e tirar da pobreza as famílias com crianças pequenas seriam necessários R$ 80 bilhões por ano - 10% menos do que a previsão de gastos com o Auxílio Brasil em 2022.
Na entrevista a seguir, Naercio Menezes Filho explica as relações entre o desenvolvimento na primeira infância, a produtividade e o crescimento da economia, detalhando também o programa que permitiria retirar da pobreza as famílias com filhos de zero a seis anos.
UOL - Agora na pandemia, muito tem sido discutido sobre o atraso no aprendizado de crianças e jovens que ficaram muito tempo fora da escola. Mas esse é um problema anterior à pandemia e, conforme seus artigos, é uma das explicações para o baixo desempenho da economia brasileira. Como os problemas do desenvolvimento infantil afetam o crescimento econômico?
Naercio Menezes Filho - São milhões de crianças brasileiras crescendo em lares de famílias vulneráveis, que lutam pela sobrevivência básica e não têm condições de dar atenção às suas crianças - conviver com elas, brincar com elas, estimulá-las. Muitas dessas famílias têm só a mãe, que vive de bicos, são lares que convivem com insegurança alimentar. Um contexto em que nem faz parte acompanhar se está tudo ok no desenvolvimento da criança.
Crianças com atraso no desenvolvimento terão mais dificuldades de aprender, de se relacionar com colegas na escola, de concentrar atenção na aula, de fazer a lição de casa - isso vai prejudicando o desempenho na escola. Depois, muita delas nem chegam a concluir o ensino médio e as que concluem acabam ficando despreparadas para o mercado de trabalho porque também lhes faltam habilidades sócio-emocionais.
E como isso acaba prejudicando o crescimento econômico?
O despreparo que começa na primeira infância contribui para que, como hoje, metade dos nossos jovens permaneçam na informalidade, exercendo atividades de baixa qualificação, sem contribuir ou contribuindo pouco para a produtividade da economia. A dificuldade de conseguir uma ocupação leva aos bicos, sem falar que no apelo da criminalidade, subjacente à dificuldade de conseguir uma ocupação de mais qualidade.
Quanto seria preciso aplicar em recursos públicos para resolver esse problema?
Eu calculo que seriam necessários R$ 80 bilhões por ano. Mas não é que esse volume de recursos vai ?resolver" todos os problemas. Calculo que R$ 80 bilhões seja suficiente para um programa de transferência de renda que retire todas as crianças de zero a seis anos da pobreza.
Quanto seria o valor da transferência?
Esse não é um cálculo simples, nem calculei um valor único para todos. Primeiro, deve ficar claro que estamos falando de crianças. Depois, que há extrema pobreza e pobreza. Além disso, a linha de pobreza que eu uso é diferente para cada estado, porque o custo de vida é diferente em cada estado. As linhas de pobreza que eu uso são diferentes dessas outras, baseadas em indicadores internacionais ou mesmo em índices nacionais.
Por exemplo, para que uma família de quatro pessoas na cidade de São Paulo não esteja na pobreza, a renda familiar tem de ser de R$ 2 mil mensais. Mas nas áreas rurais em geral e nos estados com custo de vida mais baixo, caso do Norte e do Nordeste, o valor para tirar a família da pobreza seria menor. Focando nas famílias com crianças pequenas e somando cada situação, dá esse valor global de R$ 80 bilhões.
Como seria esse programa?
Para famílias sem crianças pequenas, a transferência de renda seria um valor complementar à renda que a família já tem, suficiente para que a família saísse da pobreza extrema. Para famílias com crianças pequenas, a ideia é complementar a renda com uma transferência que retire a família da pobreza - é mais dinheiro, mas não para todo mundo, só para famílias com crianças pequenas. As crianças pequenas são o futuro do país e precisam ser protegidas da pobreza.
Esse programa substituiria o atual Auxílio Brasil ou seria um complemento?
O programa seria um substituto do Auxílio Brasil ou de outro programa de transferência de renda nesses moldes, como era o Bolsa Família. As famílias, quando elegíveis, continuariam recebendo aposentadoria, benefícios sociais de outra ordem, como o dos BPC (Benefícios de Prestação Continuada), mas não mais transferências de renda como o Auxílio Brasil.
A ideia é tirar as famílias com crianças pequenas da pobreza, para que não precisem se preocupar tanto com a sobrevivência básica e possam estar mais disponíveis, como as famílias mais ricas, para acompanhar mais de perto o desenvolvimento de seus filhos.
Estamos falando de cerca de 18 milhões de crianças de zero a seis anosNas famílias sem crianças pequenas, que estejam na extrema pobreza, o objetivo do programa é tirá-las dessa situação.
Apesar de valores mais altos em algumas regiões e cidades, como as crianças na maioria estão em localidades com custo de vida mais baixo, o valor final não é tão alto. Dos cerca quase 20 milhões de crianças de zero a seis anos, cerca de um terço, aproximadamente 6 milhões, vivem em domicílios pobres. Desse grupo, 40%, um pouco de menos de 2,5 milhões, vivem em lares sem qualquer proteção do Estado.
E a infraestrutura para garantir o desenvolvimento das crianças - creche, escola infantil etc.?
Essa é uma outra parte do problema, e se refere a políticas públicas oferecidas pelo Estado. A pré-escola está praticamente universalizada, mas na creche ainda há insuficiência de oferta. Há filas não atendidas e muitas mães enfrentam problemas para matricular seus filhos. Além disso, as creches no Brasil, em geral, não são de boa qualidade. É claro que, se estamos pensando no desenvolvimento das crianças, não adianta apenas colocá-las em qualquer creche.
É preciso que as creches estimulem as habilidades sócio-emocionais das crianças. Isso quase só é verdade entre nós naquelas creches frequentadas por crianças de família com mais condições financeiras, o que, não podemos esquecer, também contribui para aumentar a desigualdade social.
Não é tanto uma questão de infraestrutura física dos estabelecimentos públicos, mas de currículo, treinamento de cuidadores e professores, coisas mais qualitativas.
O volume de recursos aplicado, no Brasil, em programas de desenvolvimento da primeira infância, é suficiente?
Não existe um orçamento único para a primeira infância no Brasil. São muitos orçamentos separados - o da atenção básica na saúde, o de creches, transferências de renda, assistência social. Os números dos gastos com as crianças de zero a seis anos estão espalhados, e, mesmo no caso de cada prefeitura, são várias atividades e orçamentos. Não existe esse cálculo.
Se formos observar as creches, por exemplo, é certo que tem havido aumento dos gastos ao longo do tempo, mas, claramente, os recursos aplicados, principalmente pelas prefeituras, não são suficientes, pois ainda faltam vagas.
São dois objetivos que têm de ser cumpridos: a criança tem de estar na creche, precisa ter vaga para ela, e a creche tem de prestar um serviço de qualidade. Ainda não conseguimos superar o primeiro desafio, que é ter creche para todas as crianças que precisam.
A baixa mobilidade social brasileira, ou seja, pessoas nascidas em famílias pobres em grande maioria continuam pobres e seus filhos serão pobres, tem a ver com a falta de atenção e de investimento no desenvolvimento das crianças na primeira infância?
Claramente. Todos os estudos recentes de várias áreas do conhecimento, não só a economia, mas também na medicina, enfermagem, psicologia, neurociências, concluem que, se a criança não se desenvolve adequadamente, ela terá dificuldade de contribuir no futuro, conseguir um bom emprego no setor formal, ganhar um bom salário, montar novos negócios, pagar impostos e assim por diante.
Quem são as crianças que apresentam mais problemas de desenvolvimento e tendem a enfrentar essas dificuldades no futuro? São as mais pobres, as que são filhos de mães com menos escolaridade, cujas mães têm problemas de saúde mental, algo muito pouco discutido no Brasil e um dos principais fatores que prejudicam o desenvolvimento infantil.
Tudo isso vai criando uma bola de neve. A criança vai convivendo nesse ambiente de muito estresse, de violência mesmo. Daí seu desenvolvimento fica prejudicado, ela começa a ir mal na escola e lá na frente não consegue se inserir no mercado de trabalho. Assim, a mobilidade social fica prejudicada também.
O grande ideal é que se tivesse no país igualdade de oportunidades. Toda criança que nascesse no Brasil deveria ter as mesma condições iniciais para realizar seus projetos na vida. Não necessariamente todo mundo terminaria igual porque as pessoas fariam escolhas diferentes, mas todas as crianças deveriam ter as mesmas condições de partida.
No Brasil, isso não existe, e a desigualdade se torna permanente, se autorreproduz. O problema do desenvolvimento infantil afeta tanto a desigualdade, porque não dá para reduzir a desigualdade se as crianças não se desenvolverem, quanto o crescimento econômico, porque essas mesmas crianças, quando crescerem, vão ter problema para se encaixar no mercado de trabalho. Ao resolver o problema da primeira infância, resolvem-se dois problemas de uma vez só: o do crescimento econômico e o da desigualdade de renda.
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