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José Paulo Kupfer

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Inflação de alimentos é global, mas fome cresce no Brasil por causas locais

19/04/2022 09h28

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As circunstâncias do saque a um supermercado, no bairro carioca de Inhaúma, na noite deste sábado (16), ainda estão sendo apuradas pela polícia. A hipótese de uma ação determinada por milícias armadas ainda não foi descartada, havendo também informações de que grupos se organizaram em redes sociais para invadir o estabelecimento.

Independentemente da motivação do ato, no qual cerca de 200 pessoas levaram principalmente alimentos e cervejas, saques são sinais mais extremos da existência de dificuldades de acesso a alimentos. Pela realidade à volta e por já abundantes pesquisas e estatísticas, não há dúvida do alastramento da insegurança alimentar e da fome aberta na população.

Inflação alta, com destaque para a explosão dos preços dos combustíveis e dos alimentos, é um, neste momento, fenômeno não só brasileiro, mas global. De sequela da pandemia à guerra na Ucrânia são muitas as causas da escalada dos preços. Nos Estados Unidos e na Europa da Zona do Euro, a inflação anda batendo em 8%, nível inédito há algumas décadas.

A pandemia provocou um desarranjo nas cadeias de produção e logística, contraindo a oferta de bens por falta de suprimentos. O problema foi agravado com a alta das cotações de petróleo, em 2021, a partir de desequilíbrios específicos do mercado.

Com a guerra na Ucrânia e as sanções à Rússia, explodiram as pressões sobre os preços internacionais de petróleo, energia e alimentos. As dificuldades no lado dos custos de produção acabaram acarretando reduções na oferta, ao mesmo tempo que a demanda em recuperação, com o gradual alívio na disseminação da pandemia e nos consequentes lockdowns, atuou pressionando os preços.

Mas, também existem razões particulares brasileiras na situação atual. Estas vão da combinação de alta dos preços e perda de poder aquisitivo, ao desmonte, a partir de 2016, intensificado no governo de Jair Bolsonaro, da estrutura de políticas públicas de proteção contra a insegurança alimentar.

Praticamente dobrou, de 2018 para 2022, o número de cidadãos atingidos pela fome aberta, ao mesmo em que se amplia o conjunto de famílias em situação de insegurança alimentar — ou seja, que vivem sem a certeza de que amanhã terão um prato de comida para se alimentar. De 10 milhões há menos de cinco anos, atualmente são 20 milhões de pessoas atingidas no Brasil pela fome aberta.

Em pesquisa recente do Datafolha, realizada em março, 24% das famílias pesquisadas declararam que a quantidade de comida disponível no domicílio tem sido insuficiente para alimentar seus integrantes. Este percentual sobe para 35% nas famílias mais pobres, com renda até dois salários mínimos, e é mais espalhado na população nordestina.

Dois fatores concorrem, em direções opostas, para dar sustentação a esse quadro de empobrecimento e piora nas condições de vida da população. De um lado, a cesta básica já aumentou quase 50% desde o início da pandemia. De outro, a renda média da população caiu 4%. Reajustes salariais, quando acompanham a inflação, terminam ficando abaixo da alta dos preços dos alimentos.

Os mais pobres, além disso, dispõem de menos condições de contornar a inflação, ainda mais quando, no caso atual, os índices de preços são puxados por altas em combustíveis, energia e alimentos. Estes são itens insubstituíveis nos orçamentos domésticos, que exigem o corte de outros itens, nem sempre supérfluos, quando seus preços se elevam.

Nos estratos de menor renda, a quantidade e a amplitude do que pode ser cortado, pelo orçamento mais restrito, acaba reduzindo os gastos aos estritamente essenciais. No fim desse processo de ajuste orçamentário, as muitas restrições impostas afetam duramente a sensação de bem-estar de grande parcela da população.

No caso do combustíveis, no Brasil, os preços têm sido pressionados pela política de preços da Petrobras, que determina, por sua vez, os preços do mercado da gasolina, do diesel e do gás de botijão, acompanhando as cotações internacionais do petróleo e as variações do dólar. Os preços do petróleo aumentaram cerca de 50% em 2021, enquanto os preços fixados pela Petrobras para a gasolina, por exemplo, subiram 47%, quase na mesma proporção.

Quanto aos alimentos, além do impacto da alta preços dos combustíveis no transporte dos produtos, as culturas de ciclo curto — cenoura, tomate, outros legumes e hortaliças — estão refletindo em seus preços regimes climáticos adversos - seca no Sul, chuvas em excesso no Sudeste. Os preços de grãos, cereais e óleos vegetais, dos quais o Brasil é grande exportador mundial, também acabam alinhados com os preços internacionais

As pressões sobre os preços internos dos alimentos se devem ao enfraquecimento dos mecanismos de regulação de mercado, acompanhado da "desarticulação das estratégias de fortalecimento da agricultura familiar", a que se assistiu a partir do governo Temer, e intensificado no governo Bolsonaro. O problema foi descrito em artigo da economista Nathalie Beghin, especialista em segurança alimentar e nutricional, publicado na "Folha de S. Paulo", na quarta-feira (13), sob o título de "Emergência alimentar".

A partir de 2017, de fato, os estoques reguladores da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) desceram praticamente a zero. Enquanto outros países exportadores de alimentos impunham impostos de exportação, para equilibrar a distribuição da produção para o mercado local e externo, como fez a Argentina, ou simplesmente proibiram venda externas a partir de certa proporção da produção, como fez o Vietnã, o Brasil nada fez para evitar a inflação de alimentos.

Programas de aquisição de alimentos, que dão impulso à agricultura familiar, foram aos poucos sendo abandonados. A agricultura familiar é aquela que responde por grande parte da produção de arroz, feijão e mandioca, que formam a dieta alimentar básica da população. Na prática, foram deixados de lado programas de aquisição e distribuição de alimentos, alimentação escolar e até mesmo de construção de cisternas — com seus amplos efeitos positivos na produção de alimentos para consumo local.

Vergonhoso constatar que, num país líder na produção global de alimentos, a insegurança alimentar, ou seja, a incerteza de que haverá comida no prato amanhã, voltou a avançar.