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Cavalo de pau do ex-paladino ultraliberal Guedes evoca 'fiscais do Sarney'
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Depois de indicar que o governo poderia fiscalizar as margens de venda na cadeia de produção e venda de combustíveis, o presidente Jair Bolsonaro voltou a sugerir controles de preço, desta vez a donos de supermercados, mas de forma voluntária. Os apelos lembram os tempos do Plano Cruzado, de 1986, em que o então presidente, José Sarney, convocou a população a fiscalizar o congelamento geral de preços, quando surgiram os "fiscais do Sarney".
No caso dos supermercados, o apelo de Bolsonaro é para que os empresários reduzam a margem de venda e lucros. A maneira de fazer isso foi exposta pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, no mesmo evento de supermercadistas de que participava o presidente, nesta quinta-feira (9). "Nova tabela de preços só em 2023", disse Guedes. "Trava os preços, vamos parar de aumentar os preços aí dois, três meses", completou. As projeções mais recentes apontam alta superior a 15%, em 2022, no conjunto dos alimentos consumidos no domicílio.
Bolsonaro e Guedes não chegaram a conclamar a população a vestir os jalecos de "fiscais do Bolsonaro" para controlar a marcha dos preços nas gôndolas dos supermercados. Nem haveria como ser feita essa fiscalização, em tempos de mercados livres e impossibilidade prática de saber o que, numa eventual alta de preço, seria causado por aumento nos custos ou ampliação da margem de comercialização.
De Bolsonaro, pelo histórico de seus quase quatro anos de governo, pode-se esperar viradas de posição e declarações em contradição com ideias defendidas anteriormente. Mas o cavalo de pau de Guedes não deixou de surpreender, vindo do ex-paladino ultraliberal, embora ele já há tempos contemporize com as medidas populistas do chefe.
Ainda que não venha a se formar um contingente de "fiscais do Bolsonaro", os problemas que poderão decorrer do pedido são da mesma ordem daqueles enfrentados há 36 anos, quando os "fiscais do Sarney" chamavam a política para punir altas de preços nos mercados e a Polícia Federal, a mando do governo, cumpria o papel ridículo de caçar bois, escondidos por pecuaristas, nos pastos.
Foi um tempo curioso em que automóvel usado custou mais caro do que automóvel novo. A subversão das ancestrais leis da oferta e da demanda se deu porque os carros novos, com preços tabelados, sumiram da praça. Assim, com o aumento da demanda por usados, os preços destes acabaram superando os das tabelas congeladas dos zero km.
Para escapar do controle de preços, as indústrias começaram a maquiar produtos, tentando driblar o tabelamento. Um dado produto, por exemplo, na cor cinza, com preço tabelado, era substituído por um outro, bicolor, ou com outra qualquer característica não descrita no bem com preço congelado, fora das listas e das restrições.
Decretado em fevereiro de 1986, o Plano Cruzado foi concebido pelos mesmos economistas — André Lara Resende, Persio Arida e Edmar Bacha — que oito anos depois elaboraram o Plano Real. A inflação desabou, mas os problemas de desabastecimento, filas nos supermercados e ágios em mercados paralelos logo apareceram.
O plano resistiu, aos trancos e barrancos, até as eleições de novembro, nas quais o governo obteve ampla maioria. Seis dias depois, porém, o Plano Cruzado foi substituído pelo Cruzado II, com válvulas de escape para os desarranjos causados pelo congelamento de preços.
Alguns produtos registraram aumentos de preços de 50% a mais de 100% num único dia. Foi o caso da gasolina, dos automóveis, bebidas e tarifas de energia e telecomunicação. Em janeiro de 1987, a inflação já estava próxima de 20% ao mês. Em junho de 1987, o Cruzado II foi abandonado.
Supondo a hipótese de que seja atendido pelos empresários, o apelo ao congelamento de margens feito por Bolsonaro e Guedes resultaria em episódios de desabastecimento e na intensificação das maquiagens de produtos. Essa maquiagem, que reduz as quantidades nas embalagens tradicionais ou promove substituição de matérias-primas na composição dos produtos, já vem ocorrendo. O fenômeno atende pelo nome de "reduflação" e já atingiu diversos produtos, como sabões, iogurtes, chocolates e achocolatados, molhos, pães, biscoitos, fósforos e um vasto rol de etcs.
É curioso observar outra semelhança da ação do governo Bolsonaro com o Plano Cruzado: seu caráter eleitoral. A contenção de preços agora sugerida só precisaria ser mantida até o fim do ano, permitindo, assim como o Plano Cruzado, a ilusão de controle da inflação no período que vai até as eleições de outubro. A isso, na época do Plano Cruzado, deu-se o nome de "estelionato eleitoral".
O principal risco e, mais uma vez, em consonância com o ocorrido no Plano Cruzado, é o de deflagrar uma ressaca inflacionária, passado o período de represamento de preços. Um caso mais recente pode ser encontrado nos primeiros meses do segundo mandato de Dilma Rousseff, em 2015.
Na ocasião, o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, promoveu um ajuste brusco nos preços de tarifas públicas, até então represados pelo governo, determinando altas próximas a 20%. No fim do ano, a inflação fechou acima de dois dígitos, em 10,67%, a mais alta desde 2002, superando de longe o teto da meta de inflação, de 6,5%.
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