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José Paulo Kupfer

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Programas de governo são ficção, mas Bolsonaro exagera na dele

11/08/2022 04h00

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Programas de governo são, antes de tudo, peças de campanhas eleitorais. Por isso, devem ser entendidos não como conjunto de medidas que serão efetivamente executadas, caso o candidato que divulga o programa seja eleito, mas, na hipótese mais otimista, como cartas de intenção. Na verdade, programas de governo em geral não passam de elementos do marketing das campanhas.

O plano de governo para um eventual segundo mandato do presidente Jair Bolsonaro, divulgado nesta terça-feira (9) e ajustado na quarta-feira (10), não foge à regra. Em 68 páginas e 32 mil palavras, procura destacar realizações do primeiro mandato, dando ênfase às ações e resultados naqueles pontos em que o governo costuma ser mais criticado — como o enfrentamento da pandemia de covid-19 e a política de meio ambiente.

O texto preliminar sofreu uma complementação na parte em que anuncia a promessa, já formulada em 2018 e não cumprida, de corrigir as faixas da tabela progressiva do Imposto de Renda. Antes o programa previa isenção para rendas até R$ 2,5 mil mensais, mas Bolsonaro fez os redatores acrescentarem um complemento, prometendo isentar rendas até cinco salários mínimos, hoje equivalentes a R$ 6.060, "durante a gestão 2023-2026".

Se programas de governo costumam, por sua própria natureza, configurar peças de ficção, o documento apresentado por Bolsonaro exagera nesse aspecto. A descrição do êxito da ação governamental em diversas áreas em que, sabidamente, ocorreram desmontes de políticas anteriormente implantadas, chega a ser chocante pela distância em relação à realidade.

Para não ser injusto, há uma base de sinceridade no documento. É quando o programa detalha os valores e princípios defendidos pelo governo Bolsonaro, que podem ser resumidos na afirmação de que "a liberdade é tão importante quanto a própria vida". Trata-se de uma adaptação suavizada da máxima de Bolsonaro segundo a qual "a liberdade é mais importante do que a vida".

"Liberdade", de acordo com o programa de governo de Bolsonaro, como descreve o documento, "é um conceito um conceito caro a todos que acreditam na família, na democracia, na liberdade econômica, no direito à propriedade, no direito à vida do nascituro, na possibilidade de expressar suas opiniões e na condução de suas vidas de acordo com valores e propósitos".

A "liberdade" do programa de Bolsonaro é, por exemplo, a econômica, que consiste em propiciar ao cidadão livre arbítrio para empreender, sem as amarras do Estado. É também a liberdade de expressão, exercida por cidadãos, inclusive em redes sociais, e órgãos de imprensa, ainda que, na sua atividade cotidiana, Bolsonaro não se canse de atacar veículos de comunicação. E é ainda "liberdade para a defesa de direitos", o que inclui a legítima defesa pessoal, com o uso de armas de fogo.

Há no documento menções, por exemplo, ao "compromisso com a transparência". Lê-se, a propósito, no documento: "Deve ser estimulada ao máximo em um governo que já se mostrou ético e continuará nessa direção como algo inegociável, que combate a corrupção e não tem medo de mostrar seus atos, todos baseados nos marcos regulatórios." Para um presidente e um governo que decretam sigilos de 100 anos a torto e a direito, a afirmação não merece confiança.

O mesmo problema aparece em outros pontos do programa de Bolsonaro. No caso da pandemia, por exemplo, o texto informa o grande sucesso do governo no combate ao covid-19. Faz uma espantosa defesa da vacinação -- espantosa para um presidente que se orgulha de não ter se vacinado e insiste em tratamentos cientificamente rejeitados --, concluindo, sem mencionar as quase 700 mil mortes e os 35 milhões de infectados, nem as disputas com governadores e Judiciário, que "o governo Bolsonaro disponibilizou vacinas para todos os cidadãos que desejassem ser imunizados contra a covid-19."

Chamam a atenção também os esforços para, além de apregoar êxitos em áreas nas quais problemas se acumularam ao longo do governo, culpar eventos externos pelas dificuldades da gestão. O destaque aos prejuízos caudados pela pandemia, crise hídrica de 2021 e impactos na inflação da guerra na Ucrânia somam uma dezena de citações no decorrer decorrer do texto.

Quem lê o programa de Bolsonaro e não tem informações da vida real poderia achar que a preservação do meio ambiente é prioridade máxima do governo. "A questão ambiental deve continuar sendo constantemente fortalecida e seguir consolidada como tema-chave de Estado, integrada nas ações, tomadas de decisão e políticas públicas", promete o documento.

O capítulo de sustentabilidade ambiental do programa de Bolsonaro é longo e repleto de menções a programas com nomes pomposos — Programa Floresta+, Operação Guardiões do Bioma, Indústria Verde. Seria tal o esforço e o empenho do governo, no combate a desmatamentos e incêndios florestais, segundo o texto apresentado, que nem parece que o desmatamento cresceu quase 60% mais em três anos de governo Bolsonaro do que nos três anos anteriores.

Esse padrão de camuflagem das ações malsucedidas ou de encobrimento de atitudes negacionistas do governo em várias áreas se repete ao longo do documento. É assim na abordagem de políticas para a cultura, onde o desmonte agressivo dos programas de incentivo às artes dá lugar a um jogo de palavras na linha de "ampliar e fortalecer a política nacional de cultura".

Continua assim na parte dedicada à educação. O documento passa por cima dos escândalos com os vários ministros que comandaram a pasta no governo Bolsonaro, do sucateamento das universidades e dos cortes de verbas para o ensino básico e até na merenda escolar.

O tratamento mentiroso, a partir do autoelogio das ações do governo Bolsonaro em diversos campos, é particularmente reprovável no que se refere à segurança alimentar. "Em contexto mundial, onde o Brasil se destaca na produção de alimentos, esse tema prioritário é ampliado no Plano de Governo do mandato que se inicia em 2023", anuncia o documento.

São usadas, porém, pouco mais de 340 palavras — cerca de 1% do total — para garantir que é possível equilibrar as exportações e as demandas internas, "devendo ser objeto de estudos aprofundados a fim de dar acesso, em primeiro lugar, à população brasileira a uma alimentação saudável, compatível com os índices internacionais de calorias e qualidade diária". Esse equilíbrio, agora considerado "possível", não foi buscado pelo governo, em seu primeiro mandato, resultando numa escalada da fome e da insegurança alimentar.

Não há qualquer menção à agricultura familiar e sua necessária valorização, ao fim dos estoques reguladores e ao abandono do programa de cisternas no semi-árido nordestino, entre outras políticas de combate à fome desprezadas pelo governo Bolsonaro. A prioridade agora prometida para o segundo mandato não chegou a tempo de impedir que o número de brasileiros em situação de fome dobrasse em um ano, de 2020 a 2021, chegando agora ao recorde de 33 milhões.

Da introdução à conclusão, em resumo, o texto do programa de governo de Bolsonaro promove contorções de dados e da realidade. A introdução pratica contorções de números a granel quando se dedica a mostrar que a pobreza aumentou no Brasil, entre 2003 e 2016, enquanto recuou no mundo, com o número de pobres brasileiros subindo de 47,4 milhões, em 2003, para 52,8 milhões, em 2016, com alta de 11%.

Na comparação, porém, o documento se vale do conhecido truque de comparar números absolutos entre datas distantes no tempo, esquecendo-se de fazer o comparativo em termos relativos ao crescimento da população no período. Em termos absolutos, é fato, mas, neste período de 13 anos, a população total aumentou 14%, com o acréscimo de 25 milhões de novos cidadãos.

A verdade é que o percentual de pobres permaneceu estável em relação à população, próximo de 25%, um quarto do total dos brasileiros, nos dois anos destacados. O número de pobres avançou com muito mais intensidade no período de 2019 a 2021, no governo Bolsonaro, quando, de acordo com levantamentos da FGV (Fundação Getúlio Vargas), registrou-se o recorde de 62,9 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza, o equivalente a quase 30% da população.

Na conclusão, o programa comete a última de suas falsidades. Conhecido por repetir a máxima inconstitucional de que "as leis existem para proteger a maioria e as minorias têm de se adequar", um comando de Bolsonaro que remete a evidentes exclusões sociais, Bolsonaro promete "garantia de direitos humanos para todos. E conclui, como se fosse verdade em seu governo: "ninguém fica para trás!"