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José Paulo Kupfer

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Haddad x Tebet: Discrepância entre Fazenda e Planejamento é regra no país

29/12/2022 04h00

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A definição de Simone Tebet para o Ministério do Planejamento traz de volta uma tradição brasileira: ministro da Fazenda adepto de um tipo de pensamento e de política econômica e ministro do Planejamento, de outros. No seu terceiro mandato, Lula montou um governo com um "desenvolvimentista" na Fazenda e uma "liberal" no Planejamento.

DIFERENÇAS DE PENSAMENTO SÃO COMUNS ENTRE MINISTROS DA ÁREA ECONÔMICA

Essa divergência de posicionamentos no ministério, em relação aos temas econômicos, é tão comum nos governos brasileiros que ensejou ao economista e diplomata Roberto de Oliveira Campos, ex-ministro do Planejamento do governo do marechal Castelo Branco, o primeiro da ditadura instalada em 1964, a formulação da primeira de suas conhecidas "Leis de Kafka".

Em artigo publicado na revista "Senhor", em 1961, depois reproduzido no livro "A técnica e o riso", de 1966, Campos explica que as "Leis de Kafka" se referem não ao escritor famoso, mas a um primo distante, Alexandre, economista que, fugindo do nazismo, radicou-se no Brasil, trabalhou na FGV (Fundação Getúlio Vargas) e durante mais de três décadas ocupou posições no FMI, inclusive como representante do Brasil na instituição. As "leis de Kafka", num total de dez, descrevem comportamentos bizarros da economia brasileira e latino-americana.

A "lei de Kafka" que constata a histórica divergência entre ministro da Fazenda e do Planejamento (ou do Banco Central) atende pelo nome de "Lei do comportamento discrepante". Eis o seu enunciado:

  • "Independentemente dos homens e de suas intenções, sempre que o Ministério da Fazenda se entrega à austeridade financeira, o Banco do Brasil escancara os cofres. E vice-versa."

Na época em que a "lei" foi formulada, o Banco do Brasil ainda operava como Banco Central, organismo criado, justamente por Campos e pelo ministro da Fazenda do governo Castelo Branco, Octavio Gouvêa de Bulhões, em 1965, assim como o Ministério do Planejamento, até então inexistente. Segundo Campos, a "lei do comportamento discrepante" torna o combate à inflação no Brasil uma aventura torturante e difícil.

Na explicação da sua "lei", Campos enumera as discrepâncias desde o segundo governo Vargas, na primeira metade dos anos 50 do século passado, até os primeiros anos da década de 60. Depois disso, protagonizaram discordâncias Delfim Netto, na Fazenda, e Reis Velloso, no Planejamento, assim como Delfim e Mario Henrique Simonsen, que se revezaram na Fazenda e no Planejamento em governos militares.

Já na Nova República, as discrepâncias entre ministros da Fazenda e Planejamento foram mais acentuadas no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, segunda metade dos anos 90, com Pedro Malan, na Fazenda, e José Serra, no Planejamento.

Também divergiam em linhas de ação na economia, nos primeiros tempos do primeiro mandato de Lula, a partir de 2003, os ministros da Fazenda, Antonio Palocci, e do Planejamento, Guido Mantega. E os ministros da Fazenda, Joaquim Levy, e Nelson Barbosa, do Planejamento, no segundo e abreviado segundo mandato de Dilma Rousseff.

Discrepâncias, pelos menos aparentes, voltam a aparecer no terceiro mandato de Lula. Haddad cercou-se de técnicos com os quais já trabalhou, principalmente em sua gestão como prefeito de São Paulo. Em relação às linhas de pensamento econômico, que podem influenciar na formulação de políticas do ministério, em resumo simplificado, os novos secretários se filiam a princípios segundo as quais o setor privado opera com mais eficiência quando é impulsionado pelo Estado, sobretudo quando se miram ações sociais.

A prevalecerem, na condução do Planejamento, as posições de Tebet nas questões econômicas, a orientação do ministério seria estritamente liberal. Delimitando o espaço do Estado a áreas bem demarcadas — por exemplo, na Educação, Saúde e Segurança —, também em resumo simplificado, encara o Estado com um competidor do setor privado no mercado, reduzindo a eficiência econômica.

Uma diferença bem marcante é a preferência liberal pelas privatizações, em contraposição à visão desenvolvimentista, que, nem sempre, mas em muitos casos, resiste a privatizações, considerando o uso de empresas públicas na aplicação de políticas econômicas.

Ainda que ela possa refrear a preferência, Tebet é claramente privatista, o que pode ser atestado pela escolha de Elena Landau, economista conhecida pela insistente defesa das privatizações, para coordenadora do programa econômico de sua campanha eleitoral.

Embora não se duvide de que Haddad terá com Lula o comando da execução da política econômica, o ministério que Tebet assumirá reserva ao ministro posição de certo relevo. Pelo menos no papel, Tebet terá o controle do Orçamento, a coordenação das estatais e o planejamento de prazo mais longo.

Sob o ministério estarão órgãos de peso, como o IBGE e o Ipea, o centro de pesquisas e estudos do governo. Sem falar na cadeira que ocupará no CMN (Conselho Monetário Nacional), ao lado de Haddad e do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, curiosamente neto do autor da "lei do comportamento discrepante", mencionada acima. Será interessante observar, a propósito, o funcionamento deste novo CMN, no qual, pela primeira vez, o presidente do BC dispõe de independência legal.

Não é possível antecipar se as discrepâncias de pensamento influenciarão negativamente o governo que assume no neste domingo (1º). Tudo dependerá da disposição concreta de diálogo entre Haddad e Tebet. Antes disso, porém, dependerá do sucesso de Lula naquilo em que é reconhecidamente hábil: a arbitragem das possíveis divergências entre seus ministros.