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José Paulo Kupfer

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Programa para carro popular só no nome desvia recursos e incentiva carroças

Lançamento do Fusca Itamar em 1993, no início dos "carros populares" (Foto: Divulgação)
Imagem: Lançamento do Fusca Itamar em 1993, no início dos 'carros populares' (Foto: Divulgação)

24/05/2023 04h00

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Está previsto para esta quinta-feira (25) o lançamento pelo governo Lula de um programa para estimular a produção e vendas de carros populares. "Populares", no caso, seriam veículos com preço final entre R$ 50 mil e R$ 60 mil.

A intenção do programa é óbvia — ampliar o acesso de consumidores ao mercado de carros novos, com foco em veículos mais despojados. Mas nada óbvia é a motivação de um programa que não só parece ultrapassado no tempo, mas, sobretudo, tende a desviar recursos de necessidades mais prementes de mobilidade urbana e preservação ambiental.

São muitos os pontos negativos

Não é fácil encontrar justificativas para um programa oficial que desvie recursos públicos para estimular a produção e a venda de veículos de uso individual, movidos a combustível fóssil. A lista de seus problemas é extensa. Alguns deles:

Complica ainda mais o trânsito nas cidades;

Impacta negativamente o meio ambiente;

Desvia foco e recursos da ampliação e melhoria de transportes públicos;

Consome recursos que poderiam ser aplicados em subsídios para redução ou até eliminação de tarifas no transporte público;

Não garante efeito multiplicador na cadeia de produção automotiva.

Mesmo com a também prevista presença de Lula, numa solenidade em comemoração do Dia da Indústria, na sede da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), com direito a seminário de dia inteiro reunindo especialistas brasileiros e estrangeiros sobre os desafios indústria, o anúncio do programa na data prevista permanece incerto. Sinal disso é que até agora só circularam informações genéricas sobre o plano.

Botar de pé a ideia de ampliar o acesso dos consumidores a carros mais baratos demandaria um esforço razoavelmente grande do governo federal, em coordenação com estados e setor automotivo. Seriam exigidos cortes de tributos — federais e estaduais —, redução de margens de comercialização das montadoras de veículos e condições especiais de financiamento.

Popular, mas não muito

Ainda assim, é um pouco forçado apelidar de "popular" um bem que exigiria do comprador renda de pelo menos quatro salários mínimos. Isso se o financiamento dos R$ 50 mil do carro "popular" mais barato fosse sem entrada, sem juros e em até 36 meses.

A prestação mensal, nesse caso hipotético, seria equivalente a pouco mais de um salário mínimo. Assim, o comprador deveria ter renda mensal acima de quatro mínimos (R$ 5.280), pois comprometer mais de 25% da renda com a prestação de um carro implicaria correr risco de engordar a lista já recorde de brasileiros inadimplentes.

Pode-se, enfim, imaginar que um público preferencial do programa de incentivo ao carro popular seriam os motoristas de aplicativo. A categoria já congrega no Brasil mais de 1,2 milhão de pessoas. Mas, além do pessoal que se vira no uber, a quem o programa conseguiria atrair?

Não faz muito sentido, tudo considerado, destinar recursos a um programa com tantos pontos negativos e incertezas. Ainda mais numa etapa da conjuntura econômica em que o governo se esforça, corretamente, para ampliar a arrecadação e, assim, garantir maior volume de recursos para gastos sociais, sem pressionar as contas públicas.

Indústria automotiva é campeã de isenções fiscais

A indústria automotiva brasileira é campeã de incentivos fiscais. Os benefícios oferecidos pelo governo já começaram na própria instalação das fábricas, a partir da segunda metade dos anos 50, no governo de Juscelino Kubitschek. Nos últimos 25 anos, os subsídios e isenções acumulados somaram mais de R$ 70 bilhões. A cada ano, a indústria se beneficia de pelo menos R$ 6 bilhões só em renúncias fiscais federais.

Os efeitos econômicos da cadeia de produção automotiva estão entre os argumentos sempre invocados para a criação de incentivos, como ocorre agora com esse novo programa de carro popular. A indústria automotiva, de fato, ainda tem peso relevante na produção nacional. Ela responde por 5% do PIB (Produto Interno Bruto) e 20% da indústria de transformação.

A montagem de veículos aciona indústrias "para trás" das linhas de montagem de veículos, como é o caso dos setores de aço, vidros, plásticos, borrachas, autopeças e eletrônica. Também tem impactos "para frente", nas revendas, oficinas, companhias de seguros e bancos financiadores. Mas esses efeitos poderiam ser obtidos, com maior impacto social e ambiental, se o programa de incentivo mirasse, por exemplo, a produção de ônibus e trens.

Carros depenados e ultrapassados

Outro problema diz respeito aos próprios carros incentivados. Eles teriam de ser, por definição, carroças, num retrocesso ante as tendências mundiais. Movidos a combustível fóssil, em tempos de avanço do carro elétrico no mundo, seriam veículos "depenados", a exemplo de um programa semelhante, lançado no governo de Itamar Franco, no início dos anos 90, que já replicava um outro programa do gênero, adotado a partir da segunda metade dos anos 60, e de onde vem a definição de "pé de boi" para esse tipo de carro no osso.

Mas nem mesmo o exemplo de 30 anos atrás seria possível seguir. O preço do Fusca "pé de boi" do presidente Itamar, apenas corrigido pelo IGP-M (Índice Geral de Preços - Mercado) custaria hoje R$ 80 mil.

Ainda que desprovidos de acessórios, materiais melhores e eletrônica embarcada, os "pé de boi" do Lula não poderiam abrir mão de itens de segurança, hoje obrigatórios por lei. São limitações que dificultam reduzir o preço final dos carros e, em consequência, o interesse da indústria em sua produção. Em outras palavras, os benefícios à indústria automotiva teriam de ser muito amplos para estimulá-la a aderir com vontade ao novo programa.

Transporte público reclama recursos

Melhor seria aplicar os recursos em outros programas de maior alcance social, muito longe de atender a uma grande demanda reprimida. Segundo estudo da CNI (Confederação Nacional da Indústria), para equiparar o transporte público, no Brasil, ao oferecido no México e no Chile, seriam necessários investimentos de R$ 300 bilhões, 90% dos quais em metrôs.

Em simultâneo com investimentos em transporte público, o governo federal poderia coordenar esforços e transferir recursos para programas de redução de tarifas no transporte público. Poderia, por exemplo, apoiar iniciativas para a adoção de tarifa zero, que tramitam no Congresso, como a proposta de emenda constitucional da deputada Luiza Erundina (PSOL-SP), que cria um sistema único de mobilidade, financiado com receitas de impostos federais, estaduais e municipais.