José Paulo Kupfer

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Opinião

Alta artificial do peso faz preços na Argentina explodirem para brasileiros

As redes sociais estão infestadas de vídeos com argentinos atravessando a fronteira com o Brasil para fazer turismo ou simplesmente comprar produtos no comércio brasileiro. Chamou especialmente a atenção, neste começo de 2025, a invasão de argentinos na loja da Decathlon, em Florianópolis (SC).

Essa loja passou a ser a campeã mundial de vendas da gigante multinacional francesa de artigos esportivos, na frente das 1.700 unidades da marca em 76 países. Na atual campeã de vendas, 90% dos clientes diários são argentinos.

Também há uma infinidade de vídeos e depoimentos de brasileiros espantados com preços altíssimos, se convertidos do peso para reais, no comércio argentino. Na contramão da invasão argentina, as viagens de brasileiros ao país vizinho registram agora custos quase proibitivos.

A história se repete?

A explicação para essas ondas é uma só: a taxa de câmbio valorizada. De certa forma encoberta pela espetaculosa — e arriscada — contração do gasto público, a política de controle das cotações do dólar, adotada pelo governo de Javier Milei, está produzindo os efeitos previstos na derrubada da inflação.

Mas o problema é que, no médio prazo, segurar a cotação do dólar também tem um efeito previsto, sob a forma de crise cambial. A história econômica argentina, nos últimos 50 anos, tem sido uma sucessão de fracassadas tentativas de dolarizar a economia.

Nesse longo período de tempo, a Argentina experimentou mais de uma dezena de planos de estabilização monetária. Desses, quatro pareciam que iam dar certo, mas sucumbiram em até um ano e meio. Só o Plano Cavallo, que decretou a paridade da moeda local com o dólar e a tornou conversível, permitindo a circulação do dólar, resistiu por mais tempo.

Concebido e executado pelo ministro da Economia do presidente peronista Carlos Menem, Domingo Cavallo, o plano durou 10 anos, de 1991 a 2002. Mas terminou na maior moratória de dívida externa de um país até então na história, e com grande confusão política e econômica. De dezembro de 1999, quando Meném deixou o governo, a maio de 2003, quando assume outro peronista, Nestor Kischner, a Argentina teve cinco presidentes.

Começo promissor, fim melancólico

O começo desses planos em que a moeda é artificialmente valorizada ante o dólar é promissor, com derrubada da inflação. Mas o fim é melancólico e traumático, com o esgotamento das reservas em dólares, moratória de uma dívida externa tornada incontrolável, desarranjos econômicos e crise social.

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Ainda não houve exceções nesse roteiro, e as esperanças de que desta vez seja diferente, com base nas excentricidades econômicas de Milei, são frágeis. Todos os planos anteriores também se apoiavam em excentricidades econômicas e deram no que deram.

O fato de o peso argentino liderar o ranking das moedas que mais se valorizaram ante o dólar em 2024 dá uma ideia do nível em que se encontra o controle da política cambial na Argentina. Em termos reais, o peso se valorizou 45% ante o dólar até novembro do ano passado, ocupando o primeiro lugar no ranking das moedas. Ao mesmo tempo, o real brasileiro ficou entre as moedas que mais se desvalorizaram com perda de 10%, em relação ao dólar.

Big Mac mais caro

É bem conhecido o "Índice Big Mac", que aponta, a partir do preço em dólares desse sanduíche de mesmo padrão em todo o mundo, os níveis de valorização e desvalorização de uma moeda.

Em fins de 2024 e início de 2025, nos cálculos da revista "The Economist", inventora do "Índice Big Mac", um Big Mac na Argentina, à taxa de câmbio oficial, custava o equivalente a US$ 7,37, segundo maior valor mundial, só perdendo para o similar suíço, que custava US$ 7,92.

Esse valor seria praticamente o dobro do que custava um Big Mac no país em 2023. O preço é 60% superior ao cobrado no Brasil e 20% mais do que nos Estados Unidos. As diferenças seriam ainda mais amplas se a taxa de câmbio considerada fosse a do mercado paralelo, conhecido como "câmbio blue".

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Crises cambiais

O outro lado de uma política de valorização cambial forçada costuma aparecer, a médio prazo, sob a forma de déficits nas relações comerciais com o exterior. Moeda local valorizada ante o dólar tende a tornar importações mais baratas e encarece as vendas ao exterior. Mas não num primeiro momento.

Um exemplo didático pode ser encontrado no que ocorreu com as contas externas brasileiras depois da adoção do Plano Real. Parte do plano de estabilização se apoiou numa política de controle da taxa de câmbio, com valorização do real ante o dólar, aplicada desde o seu início, em 1994, até fins de 1998.

Para garantir taxa de câmbio fixa, o país tinha de recorrer às reservas em dólares, o que eram alimentadas por saldos comerciais e empréstimos em dólar. A partir de 1995, porém, sucessivas crises cambiais pelo mundo -- México, Ásia, Rússia -- fecharam as torneiras de financiamentos internacionais.

Uma crise explodiu na entrada de 1999, dinamitando o regime de câmbio fixo. Aos trancos e barrancos, na correria, o Brasil adotou o regime de câmbio flutuante e introduziu o sistema de metas de inflação na economia, com a taxa básica de juros lançada à estratosfera.

No caso atual da Argentina, os efeitos negativos nas contas externas ainda não apareceram. Ao contrário, como nos outros planos de controle da inflação experimentado pelo país, o saldo comercial registra recordes positivos.

Para economistas argentinos, o impulso às importações trazido pela taxa de câmbio valorizada tem sido mais do que compensado pelo aprofundamento da recessão na atividade econômica. Do lado das exportações, que é concentrada em agropecuária, além da recuperação de safras e dos rebanhos depois de longos períodos de seca, também é a recessão que compensa o câmbio desfavorável, direcionando produção, mesmo com menor rentabilidade, para o mercado externo. Até onde a corda poderá ser esticada?

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Milei tem prometido retirar os controles cambiais em 2026 — ou ainda em 2025, se o FMI (Fundo Monetário Internacional) aportar recursos em dólares. O último presidente que tentou liberar o mercado cambial quando assumiu em 2015, Mauricio Macri, terminou seu mandato, em 2019, impondo novos controles cambiais para conter uma inflação novamente galopante, e perdeu a disputa para a presidência para o peronista Alberto Fernández.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.