Descentralização fiscal é silenciosa e preocupante, alerta economista
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É mais do que conhecida a pressão política exercida sobre o governo federal para conter os gastos públicos. Com foco e artilharia dirigida a Brasília, economistas críticos do governo e a oposição parlamentar no Congresso cobram, incessantemente, cortes nas despesas federais.
Mas o que tem crescido não são as despesas federais, e sim as de estados e municípios. Enquanto os gastos federais, no quarto trimestre de 2024 recuaram 16,5%, em termos reais, sobre o mesmo período de 2023, as despesas de estados e municípios cresceram 10,8%, também em termos reais e na comparação com o quarto trimestre de 2023, acumulando alta de 25% desde 2021, mais do dobro do crescimento da economia.
O Orçamento de 2025 aprovado nesta quinta-feira (20), depois dos remanejamentos feitos pelo relator, senador Angelo Coronel (PSD-BA), não só é mais um passo, mas também uma prova de que está em curso no país uma descentralização fiscal silenciosa.
Entre transferências regulares da União para os entes subnacionais e emendas parlamentares — que chegam este ano a mais de R$ 60 bilhões e representam o equivalente a dois terços dos investimentos públicos federais previstos na peça orçamentária — os recursos que escapam do controle federal equivalem a 20% dos gastos primários aprovados para 2025.
Essa descentralização da destinação e do uso de recursos públicos é indicativa da redistribuição de poder político entre os entes federados. Estados e municípios estão ficando cada vez menos dependentes da União, acentuando as dificuldades de coordenação da política econômica pelo governo federal. As consequências dessa situação, que começam com a perda da capacidade de coordenação das políticas públicas entre os entes federados, trazem desafios adicionais à execução de uma gestão eficiente da economia.
O alerta é do economista Manoel Carlos Pires, especialista que é referência nas questões da política fiscal. Além de professor na FGV/EPPG (Escola de Políticas Públicas e Governo, da Fundação Getúlio Vargas) e da UnB (Universidade Brasília), Pires é coordenador do CPFOP/FGV/Ibre (Centro de Política Fiscal e Orçamento Público, do Instituto Brasileiro de Economia), onde administra o Observatório de Política Fiscal, do Ibre.
Na entrevista a seguir, o economista descreve o processo que tem levado a que os recursos públicos sejam cada vez mais transferidos da União para estados e municípios. Explica também por que essa descentralização torna ainda mais difícil a tarefa do governo federal na condução da economia e na correção de seus desequilíbrios.
Suas pesquisas mostram que o que está crescendo na área fiscal mais do que os gastos federais são os gastos de estados e municípios. Por que as críticas e cobranças se concentram na área federal?
Desde a pós-pandemia, temos de fato observado um crescimento acelerado dos gastos dos estados e dos municípios. Isso decorre de vários fatores, a começar do fato de que a economia cresceu mais depois da pandemia, então a receita pública que chega aos estados e municípios, por transferências da União ou arrecadação própria também cresceram.
Além disso, uma série de decisões que estão sendo tomadas no Congresso reforçam essa descentralização de gastos. Houve um crescimento extraordinário das emendas parlamentares, mas houve também novas transferências e aumento nas operações de crédito.
Por que se cobra então o ajuste do governo federal e não o ajuste de estados e municípios?
São duas razões a meu ver. A primeira é que quem tem a obrigação de fazer estabilização macro é o governo federal. Quem tem um papel social de controlar a inflação, por meio da política fiscal e da política monetária, é o governo federal. Então, há um olhar muito maior sobre o que o governo federal faz do que os outros entes estão fazendo.
Qual é o problema dessa descentralização da política fiscal?
Para começar, é até meio óbvio que, à medida que os recursos públicos estão mais descentralizados, o peso do governo federal na definição das contas públicas diminui. Com isso, fica muito mais difícil para o governo federal exercer o papel central que exerceu nos anos 90 do século passado, nos anos 2000 e nos anos 2010.
O controle da inflação e a própria política fiscal ficam, sem dúvida, mais difíceis de serem efetivadas. Fica-se olhando para o gasto federal, mas não é que o governo federal está gastando mais, ele está destinando parcelas maiores da receita pública aos governos subnacionais.
É lá nos estados e municípios que realmente está ocorrendo aumento do gasto público. O governo federal não pode fazer nada quando o Congresso aprova uma medida de transferência.
O governo federal está gastando menos?
Em 2023, o gasto do governo federal aumentou. A emenda da transição propiciou um aumento de gastos federais, assim como o pagamento dos precatórios empurrados para frente pelo ex-presidente Bolsonaro e seu ministro Paulo Guedes. Mas agora, quando você olha 2024, houve uma contração fiscal no governo federal.
O gasto caiu e ele já está caminhando na direção do nível do patamar que a gente observava em 2022. Foi um soluço ali em 2023. O gasto federal já se recompôs para um patamar mais normal.
Os gastos, nos estados e nos municípios, porém, continuam crescendo. E não temos nenhum indicativo de que isso vai ser revertido.
A bola do ajuste fiscal passou para estados e municípios?
Meu colega do Centro de Política Fiscal, Bráulio Borges, estima que, eliminando as várias transferências federativas, o gasto público federal, no quarto trimestre de 2024, foi 16,5% menor, em termos reais, do que no quarto trimestre de 2023, indicando convergência com o gasto real médio de 2022.
Em contrapartida, os gastos subnacionais reais cresceram 10,8% no ano e 25% no acumulado desde 2021, mais do que o dobro do crescimento da economia, no período.
Além do vazamento de gastos, quais são as outras implicações dessa descentralização fiscal?
A perda da capacidade de coordenar as políticas públicas pelo governo federal tende a piorar a eficiência dessas políticas. Um bom exemplo são os programas em que há ganho de escala no fornecimento de bens ou serviços pelo setor público.
É muito mais barato, por exemplo, comprar livros numa grande quantidade e distribuir por estados e municípios do que cada estado ou município fazer as compras individualmente. Isso vale para vacina, para ônibus escolar, para um monte de programas e políticas.
Uma coordenação do governo federal ajudaria a evitar sobreposições de políticas e de gastos, que acabam gerando perdas de escala e mais ineficiências. Quando o dinheiro cresce de forma muito rápida, num curto espaço de tempo, como está acontecendo nos estados e municípios, a tendência é gastar menos bem.
Essa situação tende a perdurar?
Dois eventos relativamente recentes e relevantes mostram, sim, tendência de alguma permanência.
O primeiro, em 2024, foi a renegociação das dívidas estaduais, que vai dar um baita alívio de caixa para os estados. Nunca se viu uma renegociação pelo governo federal de dívidas estaduais dessa forma, uma renegociação sem nenhuma contrapartida dos entes beneficiados.
O segundo evento foram os fundos criados pela reforma tributária do consumo. Vai haver transferência permanente de recursos federais para estados e municípios da ordem de R$ 60 bilhões anuais, a partir de 2029. Isso dá quase 0,5% do PIB hoje e o Orçamento Federal vai ter de aumentar os gastos nessa proporção simplesmente para transferir mais recursos a governos subnacionais.
Tem ainda a renegociação da dívida estadual que começa a ser feita este ano e que vai gerar um reforço de caixa para os estados da ordem de R$ 30 a R$ 40 bilhões, caso todo mundo aderir.
Aonde isso vai parar?
Entendo que a questão fiscal tem um lado político que não pode ser desprezado. É da política atual essa predileção, tanto do Congresso como do próprio governo federal, pela descentralização fiscal.
O problema é que esse movimento não está vindo com as devidas contrapartidas. Estados e municípios estão recebendo mais recursos sem necessariamente assumirem novas obrigações, oferecerem novos ou mais serviços públicos. Isso tende a gerar um desequilíbrio federativo.
Quais as consequências?
Nas situações históricas anteriores, a correção desse mesmo tipo de problema veio com aumento de carga tributária. O aumento da arrecadação permitiu à União retomar a coordenação da política fiscal a custa de subsídios e benefícios variados a estados e municípios, assumindo dívidas inclusive.
Quem tem mais recursos públicos à disposição acaba tendo mais poder político. Isso ajuda a explicar porque dos últimos três grandes processos de restabelecimento do poder político pela União, via reequilíbrios federativos fiscais, foram feitos em ditaduras.
primeiro, foi na ditadura de Getúlio Vargas, nos anos 30 do século passado, o segundo no governo militar, nos anos 60, e só o último foi na democracia, com Fernando Henrique Cardoso, nos anos 90. FHC aumentou a carga em cinco pontos de percentagem e ainda conseguiu criar contribuições tributárias que não eram divididas com estados e municípios.
Agora esse caminho não é mais possível?
Sempre é possível aumentar a carga, mas há restrições principalmente políticas. Hoje parece existir uma resistência muito maior do que nesses períodos que mencionei. Atualmente, o centro politico, assim como a sociedade, é muito reativo a aumentos de carga tributária.
No ambiente de polarização política existente, governadores e prefeitos não querem depender da União. A oposição não quer ficar no palanque do Lula. Tem o centrão que não quer ficar no palanque do Lula.
Um exemplo da diferença entre o ambiente político do passado e o de hoje é o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). O PAC foi muito importante para a coordenação política, no segundo governo Lula, mas o PAC, relançado neste terceiro mandato, enfrenta dificuldades.
No passado, Lula levava todos os políticos da região beneficiada para a inauguração, mas hoje não está conseguindo o mesmo. A preferência dos políticos, de governadores e prefeitos é descentralizar os recursos, longe do governo federal.
Por que Lula não está conseguindo retomar essa coordenação política?
A impressão que tenho é que Lula 3 continua com uma visão do Lula 2, mas não encontra eco nos políticos e nos governos estaduais e municipais. O dinheiro do governo está chegando para eles e nem contrapartidas precisam ser oferecidas. Olha a resistência de alguns governadores em reduzir o ICMS de alimentos, reagindo negativamente às propostas do governo para a segurança pública e a crítica à nova rodada de renegociação da dívida dos estados.
O que se observa é uma descoordenação entre os entes federados, com origem no fato de que estados e municípios, com os recursos a que têm acesso, não precisam mais estar perto do governo federal. Isso nunca foi assim e é preocupante.