José Paulo Kupfer

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Opinião

Reequilíbrio democrático, paradoxalmente, passa pelo recurso de Lula ao STF

Está mais do que evidente não ter sido boa ideia usar o IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) para compensar perdas de arrecadação e cumprir regras do arcabouço fiscal. As alíquotas do IOF podem ser alteradas por decreto do Executivo, passando a valer no momento em que são fixadas, mas seu caráter é regulatório, não devendo ser usadas para aumentar arrecadação.

Também é evidente não ter sido boa ideia do presidente da Câmara, deputado Hugo Motta (Republicanos-PB), confrontar o governo, conduzindo a derrubada do decreto do IOF, uma ação quase inédita na história do Congresso. A vitória no plenário, mesmo por vasta maioria, depois sancionada pelo Senado, deflagrou uma crise política, já latente, mas ainda estava contida, de proporções imprevisíveis

Canais entupidos

O fato é que o governo do presidente Lula não tinha outra alternativa, depois da derrubada no Congresso do decreto de ampliação do IOF, se não a de recorrer ao STF (Supremo Tribunal Federal). Mesmo na incerteza de decisão judicial, esse era o único caminho para tentar sair do emparedamento em que foi colocado e desobstruir canais entupidos de negociação entre o Executivo e o Legislativo.

Muitos avaliam que o recurso do governo ao STF pode potencializar a crise já instalada com o Congresso. Seria, assim, uma ação de "perde-perde" para o governo. Mas se os parlamentares esticarem demais a corda, também pode ser um "perde-perde" para eles.

É preciso lembrar que existe um pano de fundo nesta crise. Por trás de tudo estão as emendas parlamentares. As emendas também estão sob escrutínio judicial, em processo conduzido pelo ministro do STF Flavio Dino. A tendência de Dino é propor ao STF a restrição do uso de emendas e exigir mais transparência na destinação, descontentando o grosso dos parlamentares.

As emendas, previstas na Constituição de 1988, mas que se tornaram impositivas — ou seja, de execução obrigatória pelo Executivo — em 2015, no segundo mandato de Dilma Rousseff, num Congresso agressivamente oposicionista, tiveram forte incremento no governo de Jair Bolsonaro, num esforço para obter fidelidade parlamentar. O escopo das emendas impositivas foi ampliado, adicionando as emendas de bancada às emendas individuais.

Emendas distorcem

Com isso o volume de emendas impositivas saltou de R$ 14 bilhões, em 2019, para R$ 37 bilhões, em 2020, chegando a R$ 45 bilhões em 2024. Na previsão para 2025, o volume total de emendas pode chegar a R$ 60 bilhões. Com a escalada das emendas, ocorreu, na prática, uma transferência indevida de poder fiscal do Executivo para o Legislativo.

A crescente ampliação do volume de emendas está distorcendo e desequilibrando as relações entre os Poderes da República. A possibilidade de destinar recursos públicos sem depender do Executivo — e ainda mais sem a indicação pública do destino — deu poder exagerado ao Legislativo, em relação ao Executivo, responsável pela execução do Orçamento.

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Democracia ferida

Além de tornar disfuncional a política fiscal, as emendas parlamentares estão ferindo os devidos processos democráticos e a própria democracia. Com elas, políticos se sentem empoderados a ponto de não mais considerar necessário negociar com o governo ou atender a demandas mais gerais da sociedade. Podem atender, com recursos públicos, a seus redutos eleitorais e assegurar votos que perpetuem sua presença — ou de seus correligionários — no Congresso e em seus currais políticos.

Chamado a se pronunciar, o Judiciário não tem o poder de acabar com a polarização entre Executivo e Legislativo. Mas sua decisão pode fornecer elementos para definir limites, desobstruindo espaços para negociações políticas e o reequilíbrio institucional, abalado no momento.

Essa decisão, numa avaliação prévia, mora no campo do imprevisível. O Executivo pode alterar alíquotas do IOF — e de outros impostos, como IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), e impostos de importação e exportação —, mas não pode exorbitar do caráter regulatório do tributo, usando a alteração de alíquotas com objetivo de aumentar a arrecadação.

STF pode empatar o jogo

Difícil, no entanto, é determinar a "intenção" com a mexida no tributo, pois, afinal, a alteração de alíquota resultará, inevitavelmente, em elevação (ou, em casos menos comuns, redução) de receitas. A questão, de todo modo, permanece em aberto.

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Embora haja uma série de decisões anteriores do STF em favor de decretos de alteração de IOF pelo Executivo, juristas lembram que é praxe na Corte confirmar decisões de outros Poderes. A tendência é que os ministros procurem encaminhar uma solução de compromisso entre Executivo e Legislativo.

Numa visão otimista, mas plausível, o recurso do governo ao STF, paradoxalmente, pode empatar o jogo e botar a bola no meio do campo. Ao mostrar limitações de ambos os lados para fazer o que bem entenderem, o caminho da negociação política se apresentará como o melhor.

Isso, de certa forma, já está sendo entendido. Em meio à briga, o Senado aprovou, nesta terça-feira (1), uma MP (Medida Provisória) que amplia a destinação de recursos do fundo social formado com resultados dos leilões de petróleo do pré-sal, no que foi considerado uma vitória do governo.

Do lado do Executivo, seria hora de oferecer um plano de corte de despesas, como dizem querer líderes do Congresso. Se há enorme espaço para aumentos de receitas, com a redução de gastos tributários — isenções, renúncias e abatimentos de tributos para setores e grupos econômicos —, a redução de despesas públicas se tornou inevitável.

Falta plano de corte de gastos

Há espaço também para uma revisão de vinculações automáticas de receitas. Regras automáticas de vinculação de gastos são fórmulas que procuram evitar o debate democrático da destinação de recursos públicos, podem evitar desgastes políticos, mas nem sempre se mostram racionais e eficientes.

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O caso das vinculações de receitas a gastos com Saúde e Educação é bem ilustrativo do problema. De acordo com a evolução de receitas, gastos com as duas áreas sensíveis crescem ou encolhem, sem relação direta com as necessidades das áreas.

Com a trajetória demográfica brasileira, em que se dá um rápido envelhecimento da população, a tendência é aumentar a pressão por gastos com Saúde e reduzir a necessidade de despesas com Educação. Fixar, por exemplo, o volume de gastos nessas áreas com base nas necessidades per capita da população não seria mais eficiente?

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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