Quem são as mulheres que desafiam os Césares da tecnologia?
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A SXSW é um dos eventos de tecnologia e inovação mais badalados do mundo (e também a meca dos publicitários brasileiros, que vão lá buscar as tendências e fazer contatinhos, claro). O evento é conhecido por ser um palco importante das grandes revoluções tecnológicas e do que vai acontecer no futuro. Quer ver?
O Twitter ganhou validação e começou a ser reconhecido globalmente na SXSW, em 2007. O Uber e o Spotify se popularizaram nos EUA após seus CEOs subirem aos palcos da SXSW. Elon Musk fez aparição surpresa em 2018 para falar da exploração espacial. Mark Zuckerberg foi a grande atração de 2022 quando entrou online no evento para falar de metaverso (ok, essa tendência não deu muito certo). E neste ano, robotáxis estavam circulando em Austin.
Eu não fui testemunha de quase nada disso porque essa foi a primeira vez que participei do evento. (Quase nada, porque testemunhei o robotáxi). Mas sabendo desse histórico, me chamou a atenção as mulheres de tecnologia que ocuparam os principais palcos do evento. Se o SXSW é esse catalisador das tendências, para mim parece claro que são as mulheres que estão desafiando a lógica de negócios dos brothers biliardários da tecnologia.
E é sobre três delas que vou falar hoje:
Jay Graber. Ela criou a Bluesky, uma rede social totalmente aberta que permite que cada usuário treine seu algoritmo.
Meredith Whittaker. Ela comanda o Signal, um aplicativo de troca de mensagens sem fins lucrativos e que não captura dados, permitindo que suas conversas fiquem somente entre você e seus interlocutores.
Charina Chou. Ela comanda a área de Quantum do Google e se depender dela o primeiro uso prático da computação quântica será para o desenvolvimento de medicamentos contra o câncer.
Jay. Por um mundo sem Césares
Quando vi o anúncio da palestra com Jay Graber, CEO da rede social Bluesky, achei que pelo nome (Jay) iria ver a palestra de mais um homem. Not. Que grata surpresa! Jay é uma mulher jovem, descendente de chineses, que já chegou chegando no principal palco da SXSW com uma camiseta com os dizeres "mundus sine Caesaribus". No bom português: "um mundo sem Césares".
A camiseta foi uma provocação a Mark Zuckerberg. O Mark na sua versão lutador de MMA botou uma camiseta dia desses com a frase "Aut Zuk aut nihil". Traduzindo: Zuck ou nada, em alusão à frase do ditador romano Júlio César, "César ou nada". Como todo mundo sabe, Zuck está se abraçando ao governo Donald Trump e, focado em prestigiar a extrema-direita nas suas redes sociais.
A Bluesky botou a camiseta à venda e vendeu tanto que a chefe de operações da empresa, Rose Wang, disse nesta semana que em um dia de venda de camisetas a rede faturou mais do que em dois anos de venda de domínios personalizados (que é o negócio da Bluesky). Ela chegou a brincar que, qualquer coisa, eles mudam o negócio para virar uma grande loja de camisetas. (A Tixa bem que já tentou esse caminho. Não deu certo.)
Mas o que a rede social da Jay tem de diferente das redes dos tech bros? A Bluesky é uma rede social aberta (que a propósito nasceu dentro do Twitter, já sob o comando da Jay). Ao contrário de redes sociais tradicionais centralizadas, a BlueSky é construída em cima de um protocolo aberto chamado "app" (authenticated along the protocol). Na prática, a rede permite que você crie uma rede social totalmente nova usando toda a infraestrutura da Bluesky, tendo acesso inclusive aos 32 milhões de usuários da rede (e dentro desses 32 milhões, muitos milhões de brasileiros que migraram para a rede quando Xandão bloqueou o Twitter no Brasil).
Claro que os usuários têm controle sobre suas contas e dados e eles podem optar ou não por usar a sua nova rede.
Um exemplo de nova rede criada a partir do Bluesky é a Flashes, focada em compartilhamento de fotos e vídeos. Se você tem uma conta na Bluesky pode automaticamente acessar a Flashes.
Redes tóxicas. E se alguém resolver criar uma rede totalmente tóxica a partir do Bluesky? Nesse ponto, Jay deixou a desejar nas respostas. O fato é que tais redes poderão, sim, ser criadas, mas ela diz que o fato de ser um protocolo aberto em que o usuário define como seu algoritmo vai funcionar, ele poderá facilmente evitar a interação com esses conteúdos.
Pílula de veneno. Esse modelo aberto é inclusive uma espécie de poison pill contra bilionários, já que eles não conseguiriam ter controle dos algoritmos.
Meredith. O cérebro em um jarro
Assim como Jay, Meredith Whittaker foi uma surpresa para mim no SXSW (ok, eu não cubro tecnologia e por isso talvez ainda não a conhecia). Ela hoje é a presidente da Signal Foundation, que administra e financia o Signal.
Meredith já trabalhou por 10 anos no Google onde liderou equipes de pesquisa e engenharia. Ela também foi uma das organizadoras do Google Walkout em 2018. O movimento queria chamar a atenção para a forma como o Google lidava com casos de assédio sexual e desigualdade no ambiente de trabalho. Naquele ano, uma matéria do New York Times mostrou que executivos acusados de assédio sexual tiveram pacotes de rescisão milionários. Meredith está no Signal desde 2022.
O Signal é o tal aplicativo de mensagens ao estilo WhatsApp, mas que promete privacidade completa. Detalhe: a empresa vive de doações e não tem fins lucrativos. Não tem acionistas majoritários. Por isso mesmo, o Signal pode se dar ao luxo de não coletar os dados, como faz o WhatsApp.
No palco principal da SXSW, ela criticou ferozmente os bilionários da tecnologia que criaram modelos econômicos baseados em vigilância e coleta massiva de dados, concentrando poder e influenciando negativamente a sociedade.
Ela ainda criticou o modelo de construção da tecnologia da IA, que promete realizar tarefas em nome dos usuários, mas em troca exige acesso a dados extremamente sensíveis, como informações de navegador, cartão de crédito, calendário e mensagens. Se a IA faz tudo por você, então é como "colocar seu cérebro em um jarro".
O risco político. "Você quer uma empresa centralizada que está claramente disposta a balançar nos ventos políticos para tomar uma decisão sobre seus dados daqui a 10 anos? Quando tivermos um regime diferente e um mundo diferente, mas eles ainda tiverem seus dados? Quase sinto que não preciso fazer esse discurso, porque é tão óbvio, mas esse é o mundo em que vivo.", disse ela.
Charina. Computação quântica para curar o câncer
Eu não sei vocês, mas eu até agora estava completamente por fora da computação quântica. Mas o assunto está ganhando manchetes por conta da evolução da tecnologia (e tem muito espaço lá na SXSW). O Google anunciou o seu chip quântico Willow em dezembro e mais recentemente a Microsoft disse que fez um chip super high tech chamado Majorana 1. Mal e porcamente resumindo, a computação quântica é capaz de processar septilhões de dados e com isso resolver problemas que seriam impossíveis de serem processados por computadores clássicos ou mesmo supercomputadores. A computação quântica será capaz, por exemplo, de quebrar todas as criptografias de segurança existentes no mundo. Dos bancos, dos bitcoins, de qualquer coisa. Já viu o tamanho da confusão, né?
Hoje, segundo Charina Chou, nada do que tem sido feito com computação quântica é melhor do que a computação clássica. Até porque ainda existem alguns desafios técnicos como erros nos bits quânticos. Mas a previsão é de que nos próximos cinco anos isso vai mudar e a computação quântica vai alterar toda a infraestrutura da tecnologia. (Se liga, que é logo ali!)
E por que Charina está nessa listinha das mulheres que desafiam os brothers bilhardários, se ela mesmo trabalha para o Google? Porque se depender da Charina o primeiro uso da computação quântica será para curar o câncer.
"Eu adoraria trabalhar em drogas contra o câncer. Isso é uma coisa que me motiva muito. Eu acho que seria incrível entender realmente diferentes tipos de sistemas que causam câncer no corpo e novos tipos de materiais e moléculas que podem realmente ajudar a resolver isso."
Então, como será o mundo daqui a cinco anos?
Teremos nos livrado dos algoritmos tóxicos com a Jay, teremos nossos dados protegidos com a Meredith e a cura do câncer com a Charina. Seria o melhor dos mundos, não? Um mundo com menos Césares.