Josette Goulart

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Reportagem

O drama da DM9 e da Consul em Cannes

Estava eu aqui prontíssima para falar maravilhas da propaganda brasileira e da premiação em Cannes, diretamente dos salons en décadance do fictício Hostel Martinez - instalado na Champs-Élysées da Consolação da minha cabeça - saboreando meu legítimo pão francês com um rosé saveur fraise, versão Ki-suco (ainda existe isso?), quando o zap começa a apitar. E apitar. E apitar. "Você viu a campanha fake premiada da DM9?" What??????!!!

O suco derramou sobre a mesa, manchando a primeira frase do texto que dizia "propaganda é pura poesia". Acrescentei mais tarde: "com segunda intenção". (Certo que a Clarice Lispector já deve ter dito essa frase.)

Ah, DM9!!! Isso não aconteceu, né? Achei tão surreal que a primeira reação foi tirar sarro. "Quer dizer que a DM9 está fraudando Cannes? E com IA?" Achei até moderno. Perguntei para o Ícaro Doria se era uma campanha fake e ele respondeu de imediato: "Lógico que não".

Mas fui ver o case study chamado Efficient Way to Pay. O caso era mais sério do que eu pensava.

A agência ganhou um Grand Prix de Creative Data, no festival de criatividade de Cannes, com uma campanha para a Consul que dizia que os consumidores podiam comprar eletrodomésticos da marca e pagar com o que economizariam na conta de luz.

"Isso não foi um desconto ou promoção. Era um novo modelo financeiro projetado especificamente para famílias de baixa renda pegas na armadilha da pobreza energética", diz a descrição do case.

Uau!!! Claro que isso teria grandes chances de ganhar um Grand Prix, né? (Grand Prix é mais do que o Leão de Ouro).

O primeiro sinal de alerta veio das ferramentas de buscas. As únicas reportagens sobre o case da Consul eram da premiação em Cannes. Nenhuma linha sobre o tal novo modelo financeiro em nenhum outro lugar (nem nas publicações que cobrem exaustivamente a publicidade brasileira).

Como o case study falava que, nos últimos seis meses, a Consul vendeu 12% a mais nas regiões da promoção e ainda dizia que os parceiros de varejo comemoravam a alta conversão de vendas, fiquei intrigada. Como assim a Consul não capitalizou nenhuma mídia espontânea com isso?

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- Perplexity, por favor, busque qualquer coisa sobre o assunto. (A Perplexity é uma das melhores ferramentas de IA para fazer buscas na internet. Acha de tudo.)

A Perplexity achou. Uma promoção da Enel (que distribui energia elétrica) em parceria com a Magazine Luiza. Em 2019. Ou seja, a premissa da campanha da DM9 é real: eletrodomésticos com 25 anos de idade consomem muito mais energia. As pessoas pagam caro na conta de luz e poderiam ter uma grande economia com uma geladeira nova. Eu fui repórter setorista de energia elétrica por um longo tempo e já sabia bem disso. Inclusive, as empresas de energia têm um benefício regulatório ao promoverem eficiência energética.

O vídeo manipulado

Estava ainda com tais pensamentos quando fui ver o vídeo da inscrição feita pela DM9 para o prêmio em Cannes. Em determinado trecho, Gloria Vanique, na CNN, apresenta a reportagem que dava "credibilidade" ao case. "Vanique já deixou a CNN há séculos", pensei comigo mesma.

A essa altura, os grupos de zap da publicidade já estavam pipocando com a história das manipulações que parecem feitas com IA. Vanique, na verdade, apresentava uma reportagem sobre eficiência energética no distante 2021, e não sobre uma empresa vendendo eletrodomésticos atrelados à conta de luz. Muito menos a Consul.

Outra grave manipulação foi apontada. Um Ted Talk com a senadora americana Deandrea Salvador foi apresentado no case da Consul como se ela estivesse falando do custo da energia em São Paulo. Ela falava dos Estados Unidos. (Tiveram a manha de manipular a voz de uma senadora americana? Really? Alguém me diz que é mentira esse bilhete, por favor!)

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A essa altura eu só queria um rosé de verdade e estar em Cannes de verdade (como assim um escândalo desses acontece bem quando não estou? Tive que me contentar com meu fictício Hostel Martinez e meu bem real pão francês).

Mandei zap para os dois presidentes da DM9, Pipo Calazans e Ícaro Doria (mandei novo zap depois de ver os vídeos), perguntando sobre o caso.

Perguntei para um dos maiores varejistas que vende justamente para as classes de menor renda. Eles não sabiam de nenhuma campanha da Consul desse tipo. Perguntei para a assessoria da Consul (que pertence à Whirlpool) e a primeira resposta foi que quem responde por Cannes é a assessoria da DM9, já que a agência é responsável por inscrever os casos na premiação. (Oi? Mas a campanha é da Consul. A líder de branding e comunicação da Consul subiu no palco de Cannes junto com a DM9 para comemorar a campanha que é da Consul).

E eu só queria mesmo saber: a campanha existiu, Consul?

Insisti e veio então a resposta protocolar da empresa (sem resposta direta para as sete perguntas enviadas):

"Este projeto integra um ecossistema criativo mais amplo, desenvolvido para celebrar os 75 anos da marca em 2025. Reflete o DNA inovador e o compromisso contínuo em explorar novas linguagens, formatos e narrativas que aprofundem a conexão com o público. Desde o início, esteve diretamente alinhado ao posicionamento e aos valores que guiam a marca. Sua função é abrir caminhos para conversas e ativações futuras."

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E a nota voltou a dizer que a empresa não tem responsabilidade sobre o caso apresentado em Cannes.

Eu segui na dúvida. A campanha existiu, Consul?

Já era quase meia-noite em Cannes quando fiz o último contato com a DM9. Ícaro e Pipo não responderam. A assessoria de imprensa informou que Ícaro teve um problema familiar grave em Portugal e a DM9 não vai se manifestar no momento. A assessoria do festival também não deu nenhum retorno.

O ranking

A DM9 ocupa o primeiro lugar do ranking das agências brasileiras mais premiadas neste quinto dia de festival. O que a levou ao topo foi justamente o Grand Prix da Consul.

Por uma dessas ironias do destino, a controvérsia, a polêmica, o scandal, como queiram chamar, acontece bem quando o Brasil é o grande homenageado em Cannes, por sua criatividade. (Bom, não dá pra dizer que faltou criatividade, né?).

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Ghosting

Quem frequenta o festival dos Leões de Cannes há décadas costuma contar das muitas propagandas fantasmas feitas para ganhar prêmios. Algumas nem são fantasmas, são reais, mas quando chegam a Cannes ainda não tiveram grande veiculação e ganham tração justamente depois de se destacarem na premiação.

Fica então a saída para a Consul: quem disse que a campanha de comprar uma geladeira financiada pela economia da conta de luz não vai chegar ao Brasil todo? (Se eu fosse conselheira de imagem da Consul e da DM9, já diria logo: façam acontecer). Pensando bem, alguém já deve ter dito isso para eles. A nota da empresa dá a dica: "Sua função (do projeto) é abrir caminhos para ativações futuras."

Pensamento aleatório: Difícil mesmo vai ser a DM9 explicar a senadora americana.

A frase que martela

Enquanto isso, minha taça de Ki-suco de morango insiste em me martelar a frase da Rafaela Lotto, da consultoria YouPix, em uma entrevista direto de Cannes para a Exame, falando da guerra que tanto se falou no festival: creators x publicitários.

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"Vejo os publicitários se premiando e tomando rosé, enquanto o modelo de negócio deles derrete no Brasil."

Acho que vou ficar mais um pouco aqui no meu Hostel Martinez imaginário e voltar amanhã. Afinal, a propaganda é poesia pura, mesmo que com segundas intenções. E tem muito prêmio e muita história para falarmos sobre esse ano histórico de Cannes. Sim, vai ter mais coluna amanhã.

PS: O Hotel Martinez é um hotel chiquérrimo na principal orla de Cannes, na Riviera Francesa. Há décadas, os publicitários que participam do festival que premia a propaganda mundial se reúnem no fim da noite na frente do hotel, no melhor estilo Baixo Gávea (mas as pessoas tomam rosé porque é França, é praia, e é verão na Europa, afinal de contas). A prefeitura de Cannes inclusive fecha a rua, por conta do tamanho do público. Como neste ano eu não fui para Cannes, em vez de um Hotel Martinez me restou criar na minha imaginação um Hostel Martinez.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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