Brasileiro faz bico pra pagar dívida e isso explica mau humor na economia
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Com 40% da população adulta endividada, o bico é hoje a principal estratégia para garantir uma renda extra para conseguir pagar os boletos atrasados, aponta uma pesquisa inédita do Instituto Locomotiva. Fazer bicos foi a estratégia mencionada por um em cada três entrevistados (34%). Em 2021, quando a mesma pergunta foi feita para a população adulta endividada, esse percentual era de 12%.
Para Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, a estratégia de recorrer aos bicos pode ajudar a explicar porque o brasileiro está tão insatisfeito com a economia e o governo Lula, mesmo com baixos índices de desemprego e o aumento real do salário mínimo.
"Se a principal estratégia é recorrer aos bicos — ou o que os mais ricos chamam de frila — significa que a percepção de inflação é maior do que dizem os indicadores. As pessoas estão precisando trabalhar mais para pagar dívida e conseguir ir ao supermercado. Estão trabalhando mais para comprar a mesma coisa", diz Meirelles. "Isso explica o mau humor da população em relação ao governo. O ativo que a classe C tem é o tempo. Isso tem valor. Ela escolhe se vai trabalhar mais ou menos. E se ela tem que gastar esse ativo mais do que antes, é porque o dia a dia dela não está bom."
Além dos bicos, o brasileiro também espera equilibrar as contas cortando despesas — mencionado por 33% dos entrevistados, ante 14% em 2021. A lista de como os brasileiros esperam conseguir pagar as contas conta ainda com a esperança na melhora da economia (19%), fazer hora extra (19%), vender bens (17%) e tomar um novo empréstimo com bancos (17%) ou com parentes (9%). Há ainda quem aposte numa fezinha: 6% acham que vai sair dessa com as apostas esportivas.
A pesquisa Panorama da Inadimplência no Brasil ouviu 1283 pessoas maiores de 18 anos em todo o país, entre 7 e 20 de janeiro.
Recorrência
O estudo mostra que 58% dos inadimplentes já estiveram nesta condição anteriormente — e entrar para o Serasa ou SPC deixou de ser dissuasivo. "Esse modelo de punição não resolve. As pessoas fazem um rodízio nos mecanismos de crédito. Fica inadimplente em um cartão e mantém o outro. O crédito é fundamental para a sobrevivência sobretudo das classes C e D. Se não pudesse pagar em 10 vezes, a pessoa não compraria o celular. O problema são os juros que transformam a dívida em uma bola de neve", diz Meirelles.
Nada menos do que 70% dos endividados (43 milhões de brasileiros) estão atrasados no pagamento da conta de cartão de crédito — modalidade onde estão as mais altas taxas, de mais de 300% ao ano. No ano passado, essa fatia era de 60%. E em 2021, 49%.
Já os que devem para bancos ou financeiras somam 43%, enquanto 23% atrasaram a conta do celular e 20% estão no cheque especial.
"O endividamento na classe C tem a ver com gastos imprevistos. Essa lógica da imprevisibilidade é muito mais comum nessa parcela da sociedade que não tem rede de apoio ou reserva financeira", diz ele.
Dentre os entrevistados endividados, 34% apontaram gastos não previstos como motivo para o endividamento e 33% a perda de um emprego. Falta de planejamento financeiro afetou 23% e imprevistos de saúde, pessoal ou de um familiar, 19%. Para 12%, o salário é insuficiente para cobrir todas as despesas.
O refinanciamento das dívidas está no radar de 88% dos adultos endividados. Aumentou significativamente os brasileiros que estão confiantes na capacidade de quitar as dívidas. Há dois anos, 62% tinham essa confiança. Hoje são 74%.
Perfil
O estudo mostra que 59% dos inadimplentes são negros e 54% tem só até o ensino fundamental e 61% é da classe C. Pessoas mais velhas e das classes C e D estão sobre representados entre os inadimplentes, na comparação com a população adulta. 59% dos inadimplentes.
Segundo Meirelles, a pesquisa revela um brasileiro consciente em relação ao impacto do endividamento na qualidade de vida — seja no trabalho, com a família e a própria saúde.
E 91% declaram que o acesso a um crédito mais barato impactaria muito a sua qualidade de vida financeira.
"A inadimplência não afeta só o bolso. Ela atravessa a saúde, o trabalho, os relacionamentos e até como a pessoa enxerga a si mesma. Não é só sobre conta atrasada, mas de noite mal dormida, oportunidades perdidas, e um sentimento constante de fracasso. A dívida vira um peso emocional que acompanha o brasileiro em cada escolha que ele precisa fazer", diz Meirelles.
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