'Céu não é o limite': Major Joyce é a 1ª mulher a comandar esquadrão da FAB
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Em janeiro de 2025, a major Joyce de Souza Conceição se tornou a primeira mulher a comandar uma unidade aérea na história da FAB (Força Aérea Brasileira). Ela, que é formada na primeira turma de aviadoras da Aeronáutica (2003-2006), acumula diversas marcas na carreira.
Entre elas, destacam-se:
- Formada na 1ª turma de aviadoras da FAB
- Primeira mulher a pilotar o avião C-130 Hercules
- Primeira aviadora da FAB a pousar na Antártida
- Primeira mulher a realizar um lançamento de carga na Antártida
- Primeira aviadora a comandar uma unidade aérea da FAB, o Esquadrão Gordo, no Rio de Janeiro
Conheça a trajetória da major Joyce:
Família humilde em Manaus
A militar nasceu em Manaus (AM) e cresceu no bairro Compensa. Ali, estudou em escola pública até a 8ª série e já tinha em mente ter um futuro mais sólido do que a realidade que a cercava.
"Sempre tive admiração pelas Forças Armadas, e cheguei a pensar em ingressar no colégio militar, no ensino médio, porém as vagas eram poucas e o ingresso bastante difícil para pessoas com poucos recursos para investir na preparação", diz Joyce.
Ela começou a cursar o ensino médio na Fundação Matias Machline, um projeto social na capital amazonense, após prestar uma prova de ingresso. "Pensei comigo mesma: 'É agora'. Essa é a minha chance de conseguir estudar num colégio melhor e ter a oportunidade de fazer uma faculdade, que é coisa que ninguém da minha família teve", afirma a major.
Foi em uma palestra sobre carreiras militares nesse colégio que ela viu seu horizonte se abrindo para o ingresso nas Forças Armadas. Mesmo sem pensar em ser piloto, Joyce sempre foi simpática à ideia de ser militar, mas não via chances de entrar nos tradicionais colégios do Exército, que ainda não aceitavam mulheres.
Ao final do evento, que era direcionado ao público masculino, conversou com o palestrante, que disse se lembrar de que, talvez, a Força Aérea já tivesse vagas femininas na AFA (Academia da Força Aérea), localizada em Pirassununga, no interior de São Paulo.
O ano era 2002, e ela foi a uma lan house pesquisar sobre o assunto e se inscreveu para uma prova para ingressar na carreira de intendência, para a qual não foi chamada. Nesse momento, viu que estavam abertas 20 vagas para a primeira turma de mulheres aviadoras da FAB e resolveu agarrar a oportunidade.
"Foi a primeira vez que eu realmente pensei em me tornar piloto. Pensei: 'É agora ou nunca' e 'Por que não aviação?'. Era a chance de seguir meu sonho, ingressar nas Forças Armadas e conseguir uma certa independência para a minha educação. Acho que esse foi o primeiro grande passo que eu dei. Com uma família humilde em Manaus, poderia ser que até eu mesma me bloqueasse, pensando que não faria sentido ter uma piloto de lá, 'do mato' [diz aos risos], mas abracei e deu certo", afirma a major Joyce, comandante do Esquadrão Gordo.
A major conclui: "A vida foi me levando. Eu queria ter uma boa profissão e queria melhorar a condição da minha família, e a aviação veio como uma consequência, um meio para eu atingir esse fim".
Primeira turma de aviadoras

Entre 2003 e 2006, a major Joyce esteve ao lado de outras mulheres que foram pioneiras da FAB: elas compuseram a primeira turma de mulheres que viriam a se tornar pilotas (já conversamos com outra delas, a major Carla Borges - veja mais aqui).
Ela lembra da pressão que havia sobre elas, justamente por serem as pioneiras. "Era como se houvesse um holofote em cima das aviadoras, e hoje temos a percepção de que existia uma preocupação grande se ia dar certo, ou se a FAB poderia ter dado um passo além do possível", diz a militar.
Ela lembra que toda uma infraestrutura se fez necessária para o recebimento de mais mulheres, como a construção de banheiros femininos nos esquadrões de voo, por exemplo.
"Não podíamos errar. Essa atenção em nós não era muito bem-vista por alguns colegas, gerando até ciúmes. A gente sempre quis só ser mais uma [pessoa na carreira militar]. Até hoje, eu confesso que não me acostumo com toda a atenção", afirma Joyce.
Dessas pioneiras, 11 se formaram na AFA, dividindo-se entre os diferentes tipos de aviação presentes na Aeronáutica: caça, patrulha, asas rotativas (helicópteros), reconhecimento e transporte, sendo este último o escolhido pela major Joyce para seguir sua carreira.
Trajetória na FAB

Após sua formação inicial, ela foi para o Esquadrão Rumba, em Natal (RN), onde passou por uma especialização operacional de um ano. Na sequência, integrou o Sétimo Esquadrão de Transporte Aéreo, Esquadrão Cobra, em Manaus, sua terra Natal.
Em 2012, passou a fazer parte do Esquadrão Gordo, no Rio de Janeiro, o principal grupamento de transporte da FAB, onde ficou até 2022, quando passou a prestar assessoramento no gabinete do comandante da Aeronáutica, em Brasília.
Em 2024, ela se tornou a primeira mulher a ser escolhida para comandar uma unidade aérea na FAB, sendo designada para comandar o Esquadrão Gordo, unidade na qual havia dedicado 11 anos de sua vida operacional.
Entre as principais aeronaves que já operou estão:
- T-25 Universal
- C-97 Brasília
- C-98 Caravan
- C-130 Hercules
Mesmo no comando da unidade, Joyce está fazendo o curso para voar o KC-390 Millennium, avião multimissão da FAB que está substituindo os antigos C-130 Hercules, que voaram por 59 anos no Brasil. Em 2024, conversamos com a capitã Jeciane, a primeira mulher a pilotar o KC-390 (veja mais aqui).
Missões humanitárias
Joyce diz ter escolhido a aviação de transporte pelo potencial humanitário desse segmento. Ela se lembra de diversos momentos em que pôde contribuir com a sociedade estando a bordo de aviões da FAB.
Um deles foi a crise de falta de oxigênio ocorrida em Manaus no começo de 2021, em plena pandemia de covid-19. A operação marcou Joyce por alguns motivos, entre eles, por ter ocorrido quando ela havia acabado de assumir a chefia de operações do esquadrão.
Outro motivo foi o trabalho ininterrupto, onde o descanso era o mínimo possível de acordo com a legislação. "Foram centenas de litros de oxigênio sendo transportados incessantemente, inclusive de madrugada, para salvar vidas", diz a major, que ainda lembra que, enquanto as equipes se alternavam, os aviões não paravam a operação em nenhum momento.
Esse tipo de missão também é extremamente arriscado. O transporte de oxigênio líquido impõe uma operação mais cuidadosa, pois, em caso de vazamento, se o produto químico entrar em contato com graxas ou óleos, por exemplo, ele entra em combustão, podendo causar um grave acidente.
"No início, eu não conseguia voar, até por ser parte da gerência e ter gente que tinha de ficar organizando a operação. Quando tudo já estava andando, eu consegui realizar várias saídas atendendo a essa emergência. É aí que a gente percebe a importância do nosso trabalho para o país e para a sociedade", afirma a major Joyce.
Na Antártida, a major também lançou cargas para os brasileiros que estavam na Estação Antártica Comandante Ferraz. Entre elas, as vacinas de covid para imunização dos pesquisadores ali presentes.
"Sempre que é demandado, nós estamos prontos para atender. Esse é o maior orgulho que eu tenho da unidade da qual eu sou responsável, e, às vezes, cai a ficha de que hoje estou em um local onde, lá atrás, eu olhava pra cima e via como algo muito distante", diz a major Joyce.
Vítimas do voo da Chapecoense
Outra missão de destaque que a militar se lembra de ter cumprido em sua trajetória foi a busca das urnas funerárias das vítimas do acidente com o voo dos jogadores da Associação Chapecoense de Futebol, em 2016. À época, foi preciso fazer um trajeto entre Medellín (Colômbia) e Manaus para, apenas após reabastecimento, seguirem para Chapecó (SC), onde foi realizado o velório coletivo.
Foram três aeronaves e 60 militares envolvidos na operação. Em Manaus, os caixões foram alocados em dois C-130 Hercules para conseguirem desembarcar em Santa Catarina. Foi um voo realizado em silêncio, lembra Joyce.
"São momentos que você vê que você está ali fazendo uma coisa que pouca gente faz, mas que tem que ser feito. Você está lá para isso, para atender uma emergência, para levar um conforto para uma família", diz a militar.
Às vezes, as pessoas perguntam: 'Para que servem as Forças Armadas?'. Eu fico muito tranquila de falar que nós, quando somos demandados, damos 100% de nós. Quando todos estão fugindo do cenário, somos nós que estamos chegando para tentar levar um alento, um conforto para uma família, melhorar uma situação de calamidade. Tenho certeza que foi algo que quem trabalhou na Operação Taquari [de apoio às vítimas das enchentes no RS em 2024] sentiu, de que você está fazendo a diferença, que você está sendo empregado para o que você se propôs, para aquilo que você se prepara o ano inteiro
Major Joyce
Realização profissional

Hoje, a major Joyce diz estar em uma posição privilegiada dentro da carreira.
"Todo oficial aviador sonha em ser comandante de alguma unidade aérea. Esse é, realmente, o ápice da carreira do oficial, momento no qual você é, de alguma forma, reconhecido pelas suas competências, pelo seu histórico operacional e pelas suas capacidades de liderança. Sinceramente, onde eu estou hoje, se a minha carreira acabasse agora, eu estaria completamente realizada, porque estou onde eu queria estar. Foi para estar onde eu estou hoje que eu me dediquei e fui impulsionada a carreira toda", diz a oficial.
Mas esse é o primeiro comando da trajetória, e ainda há outros na carreira a serem seguidos. "Operacionalmente, eu atingi o meu ápice, e estou 100% realizada. Daqui para a frente, é, realmente, colher os frutos para a Força Aérea, de alguma forma, retribuir à FAB e à sociedade, de outras formas, gerenciando outras pessoas em outros ambientes e exercitando a capacidade de liderança que eu acho que a mulher tem e que a Aeronáutica valoriza muito", afirma a major.
Mensagem para as futuras aviadoras

Às meninas que querem ingressar na carreira de aviadora, a major Joyce defende que invistam na competência técnica, disciplina e na capacidade de liderança. Esses são fatores determinantes para o sucesso na carreira, afirma.
"Espero, realmente, que essa minha conquista consiga inspirar outras mulheres a chegarem lá com preparo e determinação. E a gente é determinada... Quando a mulher quer, se dedica realmente a uma coisa. É difícil você demovê-la de uma ideia. Quando você realmente está focada no objetivo, você consegue alcançar posições de destaque, independentemente da profissão que escolha. No meu caso, é a aviação, mas em qualquer lugar", diz Joyce.
A major ainda lembra que é comum as mulheres serem condicionadas desde pequenas a acreditar que há atividades de predominância masculina, como as das áreas de ciência, física, matemática, astronomia e, também, a aviação, que entra nesse pacote.
"A gente é condicionada desde criança a achar que isso é coisa de menino, não de menina. Mas não é. É preciso ter foco e dedicação. Eu espero que esse pioneirismo que eu estou traçando abra portas e que, um dia, a presença feminina na aviação não seja algo extraordinário. Minha missão vai estar cumprida se, daqui a 30, 40 anos, ninguém mais ligar para esse assunto, porque vai ser comum, porque as mulheres, com seus méritos e traçando suas trajetórias, conseguirão alcançar as posições de destaque. Quanto mais natural isso for, melhor", diz Joyce.
A gente tem de sonhar alto. Nossa trajetória tem de ser baseada em mérito, dedicação, preparo, comprometimento e, com todas essas coisas e muito trabalho, o céu não é o limite. E, para mim, foi só o começo.
Major Joyce, primeira mulher a comandar uma unidade da FAB