Todos a Bordo

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Reportagem

Brasil tem 'um processo por voo': litígios preocupam setor aéreo

O Brasil é reconhecido pelo setor da aviação como o maior em número de processos contra empresas aéreas do mundo. Essa queixa é regularmente citada por executivos, que alegam que a insegurança jurídica, especificamente em questões relacionadas ao direito do consumidor, afasta o desejo de operar por aqui.

Nesta semana, diversos integrantes do setor de aviação estiveram reunidos em Bogotá (Colômbia) no Woca (Wings of Change Americas), evento da Iata (International Air Transport Association, ou, Associação Internacional de Transportes Aéreos) para debater o mercado do transporte aéreo na região.

As falas e entrevistas a seguir foram feitas durante o evento, mostrando como a judicialização é uma das maiores preocupações na região, mais especificamente, no Brasil.

Um processo a cada voo

Para Peter Cerda, vice-presidente da Iata para as Américas, a alta litigiosidade no setor é um dos principais desafios enfrentados pelas aéreas no país, sejam elas nacionais ou estrangeiras.

Questionado pelo UOL, o executivo destacou os desafios enfrentados pelas companhias aéreas no Brasil devido à alta litigiosidade no setor. "Para cada 227 passageiros, há um processo judicial no país. Isso significa que, a cada voo que decola no Brasil, um passageiro levará a companhia aérea aos tribunais", afirmou. Em comparação, nos EUA, há apenas um processo para cada 1,2 milhão de passageiros, o que evidencia a disparidade, segundo Cerda.

O executivo criticou ainda o ambiente regulatório e os custos excessivos, que desestimulam a entrada de novas empresas aéreas. "O Brasil é o país mais litigioso do mundo. Se é caro para as companhias, imagine para os passageiros", disse.

Ele alertou que, sem mudanças, o setor continuará tendo de passar por processos de recuperação judicial além da perda de conectividade, prejudicando o desenvolvimento do mercado aéreo nacional.

'Brasil é caso fora da curva'

O advogado Ricardo Bernardi, que assessora a Iata e atua em tribunais brasileiros, defendeu que a raiz do problema está na forma como o Judiciário nacional interpreta os tratados internacionais sobre transporte aéreo. Segundo ele, o Brasil criou uma jurisprudência que extrapola o que está previsto nas convenções internacionais, e isso incentiva uma indústria de ações judiciais.

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Segundo o advogado, os tribunais passaram a aplicar a legislação brasileira, que nunca foi feita para regular responsabilidade no transporte aéreo, em detrimento de normas internacionais. "Esses dois aspectos juntos (risco do negócio e busca por danos morais) são incentivos reais para que passageiros no Brasil busquem indenização diante de problemas menores", afirma o advogado.

Bernardi citou como avanço a lei 14.034/2020, que exige prova do sofrimento para conceder dano moral. "Ela elimina o dano moral presumido, mas os juízes ainda divergem quanto à aplicação", afirmou. Segundo ele, o Superior Tribunal de Justiça também tem decidido nesse sentido, mas falta uma jurisprudência firme e vinculante.

Delta: 'Cada voo no Brasil vira processo'

Gary Bunce, que atua como conselheiro jurídico-assistente da aérea norte-americana Delta Air Lines, apresentou números que comparam o Brasil e outros países. "Carregamos 1,8 milhão de passageiros nos EUA antes de ter uma ação. No Brasil, temos praticamente uma ação para cada voo", relatou.

Ele lembra que em outras jurisdições, como União Europeia, há limites claros: "[Na UE] não há danos morais e os danos estão limitados a 600 euros por atrasos maiores", afirma.

Desde 2014, os processos da Delta no Brasil quadruplicaram, chegando a quase 3 mil por ano, mesmo com uma malha de apenas três ou quatro voos diários. "Basicamente, em cada voo que operamos para o Brasil, temos uma ação judicial esperando para acontecer", disse Bunce. "Nos EUA, ganhamos muitas mais ações do que no Brasil", afirmou o consultor.

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'No Brasil, juízes não têm experiência de vida'

O executivo criticou ainda a formação dos juízes brasileiros, que entram muitas vezes na magistratura sem vivência prática do setor aéreo. "Você pode sair da faculdade, fazer uma prova e se tornar um juiz sem experiência de vida, sem experiência em aviação, o que provavelmente seria de se esperar de um juiz. Mas, nos EUA e em outros países, normalmente você será advogado por muitos anos antes de se tornar juiz. Esse não é necessariamente o caso no Brasil", disse Bunce.

Segundo ele, isso contribui para decisões baseadas na intuição ou em percepções subjetivas. "Acredito que os juízes brasileiros são movidos mais por suas próprias experiências pessoais ou por seu senso de certo e errado do que pela experiência real de litígios", afirmou.

A comparação com outros meios de transporte também é desproporcional, disse o consultor. "Por que um cliente que se atrasa, digamos, quatro horas, recebe uma indenização de R$ 3.000, e, quando se atrasar em um ônibus ou trem, não receberá nada? Eles não processam. Por que, quando vão a um jogo de futebol, chove e o jogo é cancelado, não processam por isso?", questionou Bunce.

Cursos para juízes

Uma das apostas da Iata para mudar esse cenário é a capacitação de magistrados. Segundo Bernardi, a associação firmou um acordo com a Escola Nacional da Magistratura para realizar cinco seminários voltados exclusivamente a juízes em 2024.

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"Vamos mostrar como funciona a operação aérea, porque atrasos muitas vezes são uma questão de segurança", afirmou. Os encontros acontecerão em tribunais do Paraná, Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia." Os juízes querem ouvir e querem entender, porque este também é um problema deles. Milhares de processos em andamento significam mais trabalho, mais custos para o judiciário", completou.

Falta de apoio do governo

Além da alta litigiosidade, Peter Cerda apontou os impostos excessivos e a falta de auxílio governamental como fatores críticos que pressionam as empresas aéreas a entrarem em recuperação judicial (Chapter 11). "Quando o resto do mundo estava resgatando suas companhias durante a pandemia, o governo brasileiro não agiu. As empresas tiveram que buscar alternativas sozinhas para se manterem viáveis", destacou. Ele citou ainda o imposto de 14% sobre combustível doméstico e a proposta de aumento de 26% em tributos como medidas que sufocam a competitividade do setor.

Sobre o papel dos políticos, Cerda foi incisivo: "Deputados e senadores são os mesmos que impuseram essas barreiras regulatórias e, agora, reclamam quando cidades perdem rotas aéreas", afirma.

O executivo questionou a incoerência de cobrar mais conectividade enquanto se perpetuam regras que encarecem a operação. "Se querem mais voos e preços acessíveis, precisam rever essa carga tributária e a judicialização descontrolada", concluiu, defendendo que o Brasil siga exemplos de países vizinhos que liberalizaram o setor para atrair investimentos.

* O colunista viajou a Bogotá a convite da Iata

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