'Por ser uma mulher negra, o mercado não me olha como empresária'
Hysa Conrado
Colaboração para o UOL, em São Paulo
23/11/2024 12h00
Injetar dinheiro e abrir as portas do mercado parecem as soluções mais evidentes e definitivas quando se pensa no desenvolvimento dos empreendedores negros, sobretudo da parcela feminina deste grupo. No entanto, se o contexto for o empreendedorismo entre mulheres negras, há obstáculos que percorrem os eventos históricos que as situam em um lugar de desigualdade de acessos e oportunidades, e impactam até mesmo como elas são vistas nesse meio.
O que aconteceu
Não é fácil driblar discriminação na hora de fechar um negócio. Regina Ferreira é CEO da Hutu Casting, uma agência focada em modelos negros, e já trabalhou com grandes marcas como Nike, Budweiser, Itaú e São Paulo Fashion Week. Mesmo assim, ela diz que não é fácil driblar a discriminação na hora de fechar um negócio.
O mercado não olha para nós, mulheres negras, como empresárias, mas como um pequeno fornecedor. Na Hutu, algumas marcas nos procuram para trabalhos sem cachê ou com cachê pequeno. Sempre que têm projetos voltados para inclusão e diversidade, o valor também é menor.
Regina Ferreira é CEO da Hutu Casting
Mulheres estão à frente dos pequenos negócios. Os dados mais recentes do Sebrae (Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) mostram que cerca de 24% dos empreendedores brasileiros são mulheres negras, e este também é o grupo que está à frente dos menores negócios.
Dupla jornada e rendimento menor. Neste quadro, elas têm o rendimento médio mensal até 44% menor se comparado ao de homens brancos, conforme levantamento do Sebrae. As jornadas que também envolvem os afazeres domésticos e o cuidado com os filhos se somam às dificuldades para se estabelecerem no mercado. Além disso, elas estão no centro das desigualdades socioeconômicas do país, com menor acesso à educação de qualidade e desenvolvimento financeiro, segundo dados da Pnad divulgada pelo IBGE.
Estrutura psicológica antes de investir. Para Thaís Borges, investidora-anjo da Bossa Invest e conselheira da Ella Impacta, iniciativa global que busca destinar capital em larga escala e ritmo acelerado para mulheres periféricas, antes mesmo do dinheiro, é fundamental observar se existe uma estrutura psicológica para que as empreendedoras consigam dar seguimento ao negócio.
É importante entender se elas estão preparadas para receber esse investimento financeiro ou de educação, e se não estão em uma situação vulnerável. Então, também como mentora, vejo o plano de negócio e tento estruturar um programa para que elas consigam remunerar o seu trabalho, investir e ter uma contraproposta para o negócio. Além de criar um plano B com negócios que vão ajudar a criar tração financeira para elas.
Thaís Borges, investidora-anjo da Bossa Invest
Saúde mental em primeiro lugar. Neste caso, quando é levado em consideração toda a trajetória que mulheres negras percorreram na história social do Brasil, é categórico o primeiro conselho de negócio que a investidora mantém: cuidar da saúde mental.
"Nós deixamos os pensamentos limitadores crescerem. Saber de onde vêm nossos complexos e esses gatilhos de consciência muda tudo. O que faz diferença nas nossas vidas é a ação, a ação que vai te levar adiante ou que vai te levar ao erro para aprender", afirma.
A história comum
Mulheres negras que enfrentam desafios. Apesar de uma ser empresária e a outra investidora, as histórias de Regina e Thaís têm um ponto em comum: ambas são mulheres negras que colecionam desafios na jornada para se estabelecer em suas áreas.
Deixada de lado pelas agências. Regina começou a carreira como modelo e, além de ser sempre a única negra nos trabalhos em que participava, também era constantemente deixada de lado pelas agências.
Por um período, desistiu do mundo da moda. O ponto alto da discriminação aconteceu quando ela foi, enfim, chamada para trabalhar e precisou descolorir os cabelos, teve um corte químico — quando os fios são profundamente danificados pelo produto — e não recebeu nenhuma assistência. Depois disso, decidiu sair da moda e conseguiu um emprego como caixa de supermercado.
Voltou ao mercado, mas do outro lado do balcão em busca de diversidade. No período em que esteve afastada da carreira de modelo, ela enxergou que precisava ir para o outro lado se quisesse experienciar o mercado da moda com mais diversidade racial. Então, ela fundou a Hutu há seis anos e, apesar de ainda não ter encontrado o cenário ideal, seu casting é inovador ao contar com perfis diversos em idade, biotipo e gênero.
Conta com 300 profissionais e faturou R$ 600 mil. Hoje a agência tem mais de 300 profissionais fixos e está sempre em busca de novos rostos a depender do perfil da campanha. "O faturamento triplicou no segundo ano", ela diz. Em 2023, a Hutu faturou R$ 600 mil e a previsão para esse ano continua em aberto devido aos novos trabalhos que estão em vista.
Agora, a luta é aumentar ainda mais e ampliar a presença pelo Brasil todo, e não ficar só no eixo Rio-São Paulo. Mas sempre tenho que bater na tecla de que a Hutu não existe só para campanhas de racismo. Por que não posso assinar uma campanha de carro?
Regina Ferreira é CEO da Hutu Casting
Busca constante por conhecimento. Para se fortalecer nesse meio, Regina diz que busca conhecimento e apoio entre outras mulheres negras que também estão empreendendo ou em cargos de liderança. Ela diz que o principal conselho para quem quer começar um negócio é ter persistência e, principalmente, estudar sobre o mercado com o qual quer trabalhar.
Empreender é um trabalho solitário pelas decisões que temos de tomar. Eu percebi que o cansaço faz com que a gente não consiga pensar direito. Está sobrecarregada? Tenta uma pausa da forma como você pode e dá uma oxigenada no cérebro para tentar recalcular a rota.
Regina Ferreira é CEO da Hutu Casting
Além disso, ela destaca que é importante garantir que a empresa tenha um diferencial para oferecer. "Pensar sempre em qual vai ser a contribuição disso para você e para quem vai receber o seu serviço, e personalizar as estratégias. Tem muitas coisas mudando muito rápido, mas não podemos perder a essência", afirma.
Trajetória marcada pela dedicação. Já Thaís começou a trabalhar com telemarketing e se interessou pela área tributária, então, se dedicou a fazer todos os cursos gratuitos que a empresa oferecia. Não demorou para que ela se destacasse nas vendas e, a partir disso, passou a trilhar um caminho que, depois de 20 anos, a colocou hoje no cargo de diretora comercial e sócia da Systax, uma empresa de inteligência fiscal.
Costumo ouvir que tive sorte. Mas eu sempre trabalhei muito, então, quem teve sorte? Eu ou quem investiu um e ganhou dez vezes mais com o meu trabalho?", diz. "Por mais que a gente esteja vivendo um momento com mais diversidade, eu ainda enfrento a questão de ser a única mulher preta em uma reunião de investidores.
Thaís Borges, investidora-anjo da Bossa Invest
Biografia contada em livro como referência para outras mulheres. Ciente dos percalços da sua trajetória e das dificuldades que se expandem para além da sua história individual, Thaís escreveu o livro "Furei a Bolha", onde conta sua vida desde a periferia da Zona Norte de São Paulo até a posição de destaque em que está hoje.
Faço psicanálise há mais de 20 anos. Me conhecendo também entendi que não sou uma pessoa que os mentores comuns sugerem, de criar a meta e fixar nela. Eu não tinha sonho de estar onde estou. Se eu fosse pegar o meu salário, eu ia ver que não ia comprar um carro nunca. Então, sempre foquei no próximo passo. Se o passo era o carnê, eu ia no carnê. E isso me trouxe até aqui.
Thaís Borges, investidora-anjo da Bossa Invest