Ele trocou a publicidade pela costura e criou marca de moda LGBTQIA+
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Quando Wider Gonçalves chegou a São Paulo, vindo do Recife, achou que tinha conquistado tudo o que queria: um bom cargo, uma empresa renomada e estabilidade. Mas bastaram alguns dias para perceber que aquele sonho não era dele. "Eu olhava para a minha mesa e não me via ali. Era tudo muito bonito, mas não era para mim", relembra.
O que aconteceu
Largou o emprego e decidiu empreender. Wider trabalhava na Faria Lima, coração financeiro de São Paulo. Gay e publicitário, ele decidiu mudar tudo. Largou o emprego, fez um curso de corte e costura no Senac e, em poucos meses, começou a vender peças autorais em feiras e lojas da capital.
"Eu sabia para quem queria vender: meu público era LGBTQIA+, como eu. Queria que minha marca falasse com verdade, com afeto", diz. Assim nasceu a Miró, sua marca de roupas sustentáveis, exclusivas e feitas com tecidos reaproveitados — muitos deles históricos.
A trajetória de Wider não é isolada. Uma pesquisa inédita do Sebrae mostra que 55% das pessoas LGBTP (lésbicas, gays, bissexuais, pansexuais, transgêneros e/ou travestis) já empreendem, estão montando um negócio ou planejam abrir um nos próximos três anos. Entre os motivos que mais pesam estão o desejo de autonomia, a falta de espaço no mercado formal e a busca por um ambiente onde possam ser quem são — exatamente o que motivou Wider.
Costura, resistência e afeto
A marca Miró nasceu com uma nova versão de seu criador. "Foi quando lancei a marca que me 'assumi de verdade'. Eu quis estampar minha história em tudo", conta Wider. Suas roupas têm tiragens pequenas e tecidos garimpados. "Se gostou, tem que levar. Não vai outro ter igual."
Os clientes — em sua maioria LGBTQIA+ — se identificam com o cuidado e a mensagem da marca. Ele conta que sempre soube para quem queria vender: "Meu público é LGBTQIA+. Eu entendo os gostos, os desejos, o que falta nas lojas, o que machuca. Já passei por isso. Minha roupa é feita com respeito e cuidado, e isso eles sentem."
Empreender por necessidade -- e por escolha
Empreender para ter renda. Para a comunidade LGBTQIA+, empreender vai além da geração de renda: é também um ato de sobrevivência. Segundo pesquisa inédita do Sebrae, 3,7 milhões de pessoas já comandam seus próprios negócios no Brasil — o equivalente a 24% dos que se identificam com a sigla. Outros 11% estão em processo de abertura de uma empresa, e 20% planejam empreender nos próximos três anos.
A motivação, muitas vezes, nasce da exclusão. "Para grande parte desse público, especialmente pessoas trans, empreender não é uma escolha, é a única alternativa diante do preconceito e da rejeição no mercado formal", afirma Margarete Coelho, diretora do Sebrae Nacional. "Mas mais do que garantir renda, o empreendedorismo se transforma em espaço de transformação, propósito e protagonismo."
Cerca de 40% dos entrevistados disseram que a identidade de gênero e a orientação sexual influenciaram diretamente a decisão de abrir um negócio. A razão? Discriminação, falta de oportunidades e o desejo de criar ambientes mais seguros e inclusivos -- algo que Wider conhece bem.
"A gente, que é LGBTQIA+, carrega muita solidão. O mundo não foi feito para a gente. Precisamos nos adequar, criar e lutar pelos nossos espaços", resume ele.
Segundo o Sebrae, 70% das pessoas LGBTQIA+ que empreendem já enfrentaram algum tipo de preconceito no ambiente profissional. Entre mulheres trans e travestis, o cenário é ainda mais crítico: mais de 90% recorrem à informalidade ou à prostituição para sobreviver, diante da exclusão quase total do mercado formal de trabalho.
Apesar dos desafios, há potência: 19% dos empreendedores LGBTQIA+ têm no próprio negócio sua principal fonte de renda. E há nichos onde a presença desse público é marcante — o setor de Entretenimento e Cultura, por exemplo, reúne 14% dos LGBTQIA+ empreendedores, contra apenas 2% entre os não LGBTQIA+.
"Mesmo com obstáculos, essa autonomia é motivo de orgulho. Ser dono do próprio negócio permite enfrentar o preconceito com mais força", afirma Margarete. "Eles não apenas criam para si, mas constroem negócios pautados na diversidade, empatia e inovação — e isso tem enorme valor para a sociedade e a economia."
Mais estudo, mais barreiras
Maior escolaridade e preconceito. A pesquisa mostra ainda que a população LGBTQIA+ tem níveis mais altos de escolaridade do que a média brasileira. Mas, na prática, isso não se traduz em igualdade de oportunidades. As violências — moral, verbal e psicológica — seguem constantes. Entre pessoas trans e travestis, os índices ultrapassam 75%. Quase 80% já foram vítimas de violência verbal no trabalho ou em ambientes sociais, e mais de 60% sofreram assédio moral no ambiente profissional.
Wider sente na pele. "Às vezes não são nem intencionais, mas machucam. As piadas, as dúvidas sobre sua orientação. Tive pesadelos com isso. Nosso amor sempre vem com um 'mas'. A vida toda é assim. Por isso, criar um espaço onde não há 'mas', onde a gente pode existir, amar, produzir e ser respeitado, é revolucionário", diz Wider.
Apesar dos desafios, 66% dos empreendedores LGBTQIA+ que já possuem um negócio acreditam no sucesso da empresa. A maioria já passou da barreira dos três anos de existência — sinal de resiliência e força coletiva.
"Não é só vender: é criar história"
Empreender é sobre conexão com o consumidor. "Meus produtos têm história. As pessoas criam memórias com as roupas, contam suas histórias nelas. E isso me move." Hoje, ele toca a Miró do seu jeito. "Não quero volume, quero propósito. E quero que quem compre sinta esse afeto. O empreendedorismo me salvou. E eu nunca estive tão bem."
Empreendedorismo é mais acolhedor para o público LGBTQIA+. Para a diretora do Sebrae, Margarete Coelho, o empreendedorismo tem se mostrado mais acolhedor para pessoas LGBTQIA+ do que o mercado formal. "Ele permite que criem seus próprios espaços, onde possam ser respeitadas e valorizadas por quem são."
Além da renda, empreender oferece dignidade e protagonismo. "Mesmo com desafios, ser dono do próprio negócio dá força para enfrentar o preconceito", afirma Coelho. O Sebrae tem investido em capacitação, apoio psicológico e orientação técnica para garantir que esse público tenha acesso igualitário ao ecossistema empreendedor.
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