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Em livro, juiz diz que ausência de direitos trabalhistas nos EUA é mito

João Renda Leal Fernandes afirma que comparação de regras trabalhistas entre países é muito complexa - Arquivo pessoal
João Renda Leal Fernandes afirma que comparação de regras trabalhistas entre países é muito complexa Imagem: Arquivo pessoal

Ricardo Marchesan

Do UOL, em São Paulo

04/02/2021 04h00

"Os Estados Unidos são o paraíso do empreendedorismo porque o empregador não precisa pagar direitos trabalhistas, como licença-maternidade, e pode mandar embora a qualquer momento, sem dever nenhuma indenização ou ter medo de ser processado depois."

Você já ouviu alguém fazer esse tipo de afirmação? Pode ser um pensamento comum, mas a realidade americana não é bem assim, segundo o juiz do Trabalho João Renda Leal Fernandes, 37 anos, que está lançando o livro "O Mito EUA: Um País Sem Direitos Trabalhistas?" (Editora Juspodivm).

Na obra, fruto de seu período de um ano e meio como pesquisador visitante na Harvard Law School, ele analisa e compara o sistema jurídico trabalhista americano com o brasileiro e, como sugere o título, afirma que os EUA não são completamente liberais, como se imagina.

Os Estados Unidos não são um vale-tudo [no que diz respeito às relações de trabalho]. Há vários aspectos em que a regulamentação nos EUA é mais branda do que a nossa, é uma regulamentação menor. Mas há outros aspectos em que é, até, mais protetiva e mais efetiva do que a nossa.
João Renda Leal Fernandes

Confira os principais trechos da entrevista do UOL com o autor:

Sistemas diferentes

Livro - Divulgação - Divulgação
Juiz está lançando livro sobre direitos trabalhistas nos EUA
Imagem: Divulgação

O juiz afirma que é muito complicado comparar qual país tem mais leis trabalhistas, porque os Estados Unidos seguem um sistema de precedentes, ou seja, as regras são muitas vezes baseadas em decisões anteriores da Justiça, diferentemente do Brasil, que ainda se baseia sobretudo nas leis escritas.

"Aqui, quando eu pergunto a respeito de um prazo de prescrição, o jurista me responde com base num dispositivo legal. Nos Estados Unidos, por adotarem um sistema de precedentes, as decisões judiciais constituem uma fonte primária do direito", afirma.

Eu faço uma pergunta sobre um prazo de prescrição para um jurista americano, e ele vai me responder dizendo: 'A Suprema Corte, no caso X versus Y, decidiu no seguinte sentido...'

Regras variam entre estados

Além do sistema jurídico como um todo ser diferente, nos EUA as regras variam muito de estado para estado, diferentemente do Brasil, em que a legislação trabalhista é nacional.

"A gente precisa ter bastante cautela ao analisar direitos e deveres, inclusive porque no sistema dos Estados Unidos há uma variação significativa entre os estados", afirma.

Nos EUA, os estados podem editar normas em matéria trabalhista e podem estabelecer direitos individuais trabalhistas, o que não acontece aqui no Brasil. Nossa Constituição traz o direito do trabalho como competência legislativa exclusiva da União.

Licenças médicas

O autor afirma que nos EUA de fato há algumas regras mais flexíveis e alguns direitos trabalhistas que não existem lá nacionalmente, mesmo sendo comuns em outros países desenvolvidos. Ainda assim, são situações que possuem particularidades e não podem ser generalizadas.

Ele cita que não há leis federais, por exemplo, de licença-maternidade remunerada.

Até pouco tempo, também não havia garantia de licença remunerada por motivos de saúde. Uma lei sobre isso foi aprovada por causa da pandemia. Mas alguns estados e mesmo cidades possuem leis que garantem esse direito.

Facilidade para demitir

Outro exemplo de regra mais flexível do que a brasileira, que é comum nos EUA mas possui particularidades regionais, é o "employment at-will" (emprego à vontade, em tradução livre).

Presente na maioria dos estados americanos, é um sistema em que o empregador pode mandar o empregado embora a qualquer momento, sem a necessidade de pagar verbas indenizatórias consideráveis, segundo Fernandes.

"Mas isso tem que ser analisado com bastante cautela, porque existe uma lei federal prevendo aviso prévio para a dispensa coletiva", afirma o autor.

"Além disso, quando o ambiente é sindicalizado, normalmente, os acordos coletivos assinados pelos sindicatos preveem a proibição de dispensa sem justa causa e existe pelo menos um estado, Montana, que tem uma lei também proibindo a dispensa sem justa causa."

Regra mais dura que a brasileira

Enquanto há pontos mais liberais do que no Brasil, outros são mais duros, segundo o juiz, como o pagamento de horas extras.

Ele explica que a semana de trabalho nos EUA tem 40 horas. Acima disso, são horas extras, e o trabalhador recebe uma vez e meia o pagamento da hora normal, de acordo com lei federal.

"Isso, por exemplo, é de certa forma 'sagrado' para eles. No setor privado dos Estados Unidos, não é permitida a compensação de jornada acima do módulo semanal, e as horas excedentes à quadragésima por semana devem ser remuneradas em dinheiro", afirma. "No Brasil, a própria reforma trabalhista trouxe inúmeros meios de compensação de jornada e de banco de horas."

Se não cumprir essa regra, o empregador deve pagar as horas extras em dobro, segundo determinação federal. "Eles chamam isso de danos líquidos. É um instituto que não existe aqui. Alguns estados preveem danos lí­quidos em valores superiores."

Na questão do salário mí­nimo por hora e das horas extras, não pagar essas verbas nos EUA é tratado como um 'wage theft', como se fosse um roubo de salário, na tradução literal.

Ele diz que isso causa muita disputa judicial no país.

Menos direitos, mais riqueza?

No livro, João Renda Leal Fernandes questiona, também, a ideia de que menos regras e direitos trabalhistas levam a melhores condições socioeconômicas nos EUA.

O autor cita o estudo "Best and Worst States to Work in America" (melhores e piores estados para se trabalhar nos EUA), da ONG Oxfam America de 2019.

A pesquisa apontou que estados com maiores níveis de proteção trabalhista costumam apresentar melhores índices socioeconômicos, como taxas mais altas de expectativa de vida, renda média e PIB per capita, além de menores taxas de mortalidade infantil e pobreza.

Um desses casos é a Califórnia, segundo ele, que tem o maior PIB entre os estados e o 8º maior PIB per capita.

"Certamente precisamos investir em propostas legislativas que levem à segurança jurí­dica, desburocratização, simplificação. A gente precisa de um sistema que traga com clareza quais são os direitos e deveres das partes", diz o autor.

Mas eu entendo que o trabalho humano não pode ser visto única e exclusivamente como um custo, como uma mercadoria, como se fosse um produto que você pega na prateleira do supermercado e que, por conta disso, vai estar sujeito somente às leis de mercado.