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8 perguntas para entender a crise na Venezuela e a convocação da Assembleia Constituinte

27/04/2017 11h17

A crise na Venezuela ganhou um novo capítulo após o presidente Nicolás Maduro assinar, na noite de segunda-feira, um decreto convocando uma Assembleia Constituinte, para "reformar o Estado e redigir uma nova Constituição".

A convocação vem no momento de intensificação de uma nova onda de protestos contra o governo e poucos dias depois de o país anunciar sua saída da Organização dos Estados Americanos (OEA).

A Assembleia Constituinte terá 500 membros, metade formada por representantes eleitos, segundo Maduro, "pela base da classe operária, comunas, missões e movimentos sociais", e a outra, por representantes eleitos por "municípios e territórios".

O presidente não detalhou como seria o processo de escolha. A oposição descreveu a medida como "consumação do golpe de Estado contínuo de Maduro contra a Constituição" que deve intensificar a crise política no país.

As medidas ocorrem em um cenário de mais protestos, com enfrentamentos entre forças de segurança, opositores e simpatizantes do governo, e que já levaram à morte de 20 pessoas.

São as maiores manifestações já registradas desde dezembro de 2014, quando a oposição também foi às ruas para pedir a saída de Maduro, que é sucessor do ex-presidente Hugo Chávez e integrante do PSUV, partido há 18 anos no comando da Venezuela.

A BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, explica o que está por trás dos protestos, por que essas manifestações são diferentes das anteriores e o que se pode esperar desse novo capítulo da prolongada crise política venezuelana.

1- Como seria formada a nova Constituinte?

A atual Constituição venezuelana, aprovada em 1999 após a chegada de Hugo Chávez ao poder, define que o Presidente tem poder para convocar uma Assembleia Nacional Constituinte, embora não possa vetar a Constituição que resulte do processo.

Segundo Maduro, a Constituinte seria formada por 500 membros eleitos, metade escolhida por setores sociais, e a outra, por municípios e territórios.

Ainda não foram divulgados detalhes e datas das eleições.

Segundo o constitucionalista José Ignacio Hernández, a Assembleia deveria "ser formada por cidadãos que, mediante o voto direto, secreto e universal, são eleitos constituintes".

Líderes da oposição reagiram dizendo que a convocação seria "a consumação do golpe de Estado contínuo de Maduro contra a Constituição".

"Maduro acaba de matar e assassinar o legado de Hugo Chávez à Venezuela, que era a Constituição", disse o presidente da Assembleia Nacional, Julio Borges.

Borges disse que uma Constituinte comunitária não seria "eleita pelo povo" e, portanto, não teria "os poderes que são do povo".

"Vão querer materializar um golpe de Estado com uma Constituinte comunitária para darem um salto tipo Cuba", afirmou o presidente da Assembleia, para quem a iniciativa do governo visa "fugir do voto universal, direto e secreto do povo que nas ruas exige respeito à Constituição.

2 - Como a Venezuela vai sair da OEA?

O país será o primeiro a anunciar a saída da OEA por conta própria.

O processo deve levar cerca de dois anos e possivelmente estará condicionada à quitação da dívida que a Venezuela tem com a organização, da ordem de US$ 8 milhões.

Mas a OEA pode expulsar o país antes, se quiser. Isso só aconteceu duas vezes na história: com Cuba (1962) e Honduras (2009). Os dois países já voltaram a fazer parte da organização.

3 - Quando começaram os protestos?

Na Venezuela, governo e oposição parecem viver em permanente enfrentamento, mas essa nova onda de protestos tem uma data inicial: 31 de março de 2016.

Dois dias antes dessa data, o Tribunal Supremo de Justiça venezuelano - visto pela oposição como alinhado ao governo de Maduro - emitiu uma sentença assumindo as funções da Assembleia Nacional, onde a oposição tem maioria, enquanto o Legislativo estivesse "em desacato".

Quando essa decisão do TSJ venezuelano veio a público, opositores a Maduro não hesitaram em classificá-la de "golpe de Estado". Deu-se início a uma mobilização que nem mesmo o recuo da alta corte ao reverter a própria sentença foi capaz de conter. As pessoas foram às ruas e os enfrentamentos começaram.

4 - O que há de novo ou de diferente no enfrentamento de agora?

A Suprema Corte venezuelana atribuiu à Assembleia a situação de desacato porque o Legislativo decidiu incorporar, em agosto de 2016, três deputados do Estado do Amazonas mesmo depois de a eleição dos mesmos, em dezembro do ano anterior, ter sido impugnada.

O TSJ já tinha passado a considerar nulas as ações do Legislativo que, pela primeira vez desde a chegada de Hugo Chávez ao poder, em 1999, passou a contar com maioria oposicionista. Por isso, na opinião de muitos analistas, a sentença na qual o TSJ assumiria as funções da Assembleia pouco mudava, na prática, a situação na Venezuela.

Mas, para a oposição, a decisão da mais alta corte venezuelana foi a prova definitiva do rompimento da ordem democrática e representava a disposição de "passar por cima" da vontade popular expressada nas urnas.

"É um golpe de Estado. Até agora, o Tribunal anulava as decisões da Assembleia, mas agora assumiu as competências do Legislativo. Fechou o Parlamento. Não é o mesmo, é completamente diferente", disse à BBC Mundo o líder opositor Henrique Capriles, quando o TSJ anunciou sua decisão de assumir o papel de Legislativo.

Além disso, o novo embate entre oposição e governo se dá num momento em que não é mais possível, pelos prazos previstos na Constituição, de chamar uma consulta popular para revogar o mandato de Nicolás Maduro. O Conselho Nacional Eleitoral - que a oposição afirma estar controlado pelo governo - fechou as portas para essa possibilidade.

Esse momento se difere também porque, com o aprofundamento da crise econômica venezuelana, há sinais de enfraquecimento do apoio entre os mais pobres ao governo bem como de possíveis fraturas internas do chavismo.

5 - Qual é o pano de fundo dos protestos?

Há na Venezuela uma prolongada crise econômica, que colocou a maioria dos venezuelanos numa situação muito pior que a vivenciada na época dos protestos de 2014.

A queda dos preços do petróleo - que representa aproximadamente 96% da renda do país - tem reduzido ainda mais os recursos do Estado e agravando ainda mais a escassez de alimentos e produtos de primeira necessidade.

Isso gerou um desabastecimento quase crônico que, junto à maior inflação do mundo, fez com que grande parte da população tenha problemas para conseguir comida.

Além da crise, há uma intensa disputa política. A Venezuela está dividida entre os chamados chavistas - como são conhecidos os simpatizantes das políticas socialistas do ex-presidente Hugo Chávez -, e os opositores, que esperam o fim dos 18 anos de poder do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV).

Depois da morte de Chávez, em 2013, Nicolás Maduro, também integrante do PSUV, foi eleito presidente com a promessa de dar continuidade às políticas do antecessor.

E, de acordo com pesquisas, a crise tem provocado queda na popularidade do presidente Maduro, uma das razões pelas quais a oposição insiste em antecipar as eleições. O governo continua responsabilizando a oposição por agravar a crise e dividir o país.

E o fato de não terem sido realizadas as eleições regionais previstas para o ano passado privou aos venezuelanos de indicar qual das duas posições políticas conta, no momento, com apoio da maioria dos eleitores no país.

6 - O que a oposição quer?

A principal demanda dos que se opõem ao governo de Maduro é antecipar as eleições presidenciais, originalmente previstas para outubro de 2018. Mas eles também querem um pleito regional, que deveria ter ocorrido no ano passado, e um municipal, este, previsto para este ano.

Na última semana, Nicolás Maduro se mostrou favorável à realização das eleições locais, mas não as convocou.

Os oposicionistas também querem a libertação de políticos presos - a maioria deles foi detida depois dos protestos de janeiro de 2014.

Há também a demanda pela devolução das competências da Assembleia Nacional e pela renovação dos outros poderes do Estado, como o Tribunal Supremo de Justiça e o Conselho Nacional Eleitoral, que, de acordo com a oposição, contam com juízes alinhados com o governo.

7 - O que diz o governo?

O governo de Nicolás Maduro tem classificado as ações da oposição venezuelana como uma ofensiva golpista.

Em relação às denúncias de excessos na repressão policial feitas pela oposição, o Executivo tem respondido acusando os oposicionistas de fomentar a violência, de praticar "terrorismo" e de querer preparar o terreno para uma eventual intervenção estrangeira.

Ao mesmo tempo em que ataca os adversários, Nicolás Maduro chamou os líderes da oposição para iniciar um diálogo "para que depois não reclamem". Durante sua participação semanal num programa de televisão, o presidente respaldou a ideia de realizar eleições para escolher governadores e prefeitos. Mas nada falou sobre uma nova disputa pela cadeira presidencial.

"Estou ansioso para que venham as eleições dos governadores e, quando chegar as de prefeitos, que venham as eleições de prefeitos. Estou ansioso porque nosso terreno natural é de luta de ideias [no campo] eleitoral", declarou Maduro.

"Estou pronto para que o poder eleitoral disser e minha busca será pela paz. Estou pronto para o diálogo", disse o presidente, emendando que quer "construir caminhos de paz" para que os opositores "abandonem os caminhos da violência e o golpismo".

8 - Quais são os possíveis cenários daqui para frente?

Apesar de serem consideradas pequenas as possibilidade de as negociações entre governistas e oposicionistas alcançarem resultados concretos, como a definição de um calendário eleitoral ou a liberação de alguns políticos presos, não se pode descartá-las por completo.

Mas o fracasso das tentativas de diálogo em 2014 alimenta o ceticismo. Por isso, ainda que os dois lados se sentem à mesa para negociar, dificilmente a oposição sairá completamente das ruas.

Por ora, parece pouco provável que o governo concorde com a realização de eleições presidenciais antecipadas, uma condição da qual a oposição não abre mão. Ao assinar o decreto da convocação da Constituinte, Maduro voltou a descartar o adiantamento das eleições presidenciais, marcadas para dezembro de 2018.

Assim, um segundo cenário, com escalada de manifestações e de violência, parece bastante provável, ao menos a curto prazo.

Permanece, contudo, a dúvida sobre se os protestos eventualmente perderão força e desaparecerão sem provocar mudanças, como aconteceu em 2014, ou se conseguirão fazer com que o governo ceda, como quer a oposição venezuelana.

*Texto originalmente publicado no dia 27 de abril e atualizado após anúncio da convocação da Assembleia Constituinte.