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A rebelde inglesa que inventou o jogo Monopoly para denunciar os males do capitalismo

Fernando Donasci/UOL
Imagem: Fernando Donasci/UOL

Kate Raworth

29/08/2017 17h06

"Compre terra, já não se fabrica mais", disse certa vez Mark Twain. É uma máxima que certamente pode ser aplicada em uma partida do Monopoly, o bem-sucedido jogo de tabuleiro que ensinou gerações de crianças a comprar propriedades, enchê-las de hotéis e cobrar aluguéis astronômicos de outros jogadores pelo privilégio de passar por ali por acidente.

No Brasil, o jogo começou a ser vendido em 1944 com o nome de Banco Imobiliário pela Estrela, em parceria com a Hasbro, dona do jogo. As duas empresas encerraram a parceria, e a Estrela lançou uma nova versão do jogo, "abrasileirando-o", enquanto a Hasbro decidiu vendê-lo no país com o nome Monopoly.

A criadora pouca conhecida do jogo, Elizabeth Magie, sem dúvidas ficaria maluca se tivesse vivido o suficiente para descobrir quão influente a visão distorcida de seu jogo se tornou. Por quê? Porque encoraja os jogadores a celebrar os valores exatamente opostos aos que ela pretendia defender.

Nascida em 1866, Magie era uma rebelde que falava abertamente contra as normas e as políticas de seu tempo. Ela era uma mulher não casada aos 40 anos, independente e orgulhosa disso, e expôs seu ponto de vista com um truque publicitário.

Em um anúncio de jornal, ela se ofereceu como "uma jovem escrava americana" a ser comprada pela maior proposta. Seu objetivo, afirmou aos leitores em choque, era escancarar a posição de subordinação das mulheres na sociedade. "Nós não somos máquinas", disse ela. "Meninas têm cérebros, desejos, esperanças e ambição."

Além de confrontar políticas de gênero, Magie decidiu encarar o sistema capitalista de posse de propriedades - desta vez não por meio de um truque publicitário, mas na forma de um jogo de tabuleiro.

A inspiração surgiu com um livro que seu pai, o político antimonopólio James Magie, havia lhe dado. Nas páginas do clássico de Henry George, Progresso e Pobreza (1879), ela encontrou a convicção de que "o direito igual de todos os homens ao uso da terra é tão claro como seu direito a respirar o ar - é um direito proclamado pelo fato de sua existência".

Ao viajar pelos Estados Unidos em 1870, George assistiu a destituições constantes de terra em meio a uma riqueza crescente, e ele acreditava que isso ocorria devido à desigualdade da posse de terras que unia essas duas forças - pobreza e progresso - juntas.

Então, em vez de seguir Twain e encorajar outros cidadãos a comprar terras, ele pediu ao governo para taxá-las. Com base em quê? Ele partiu da ideia de que boa parte do valor de um lote não vem do que está construído ali, mas do que a natureza pode oferecer em termos de água ou minerais que podem estar abaixo da terra ou do valor criado devido aos seus arredores, como estradas e trilhos próximos, uma economia em expansão, um bairro seguro, boas escolas e hospitais locais.

E argumentou que o dinheiro das taxas deveria ser investido para o bem de todos.

Determinada a provar o mérito da proposta de George, Magie inventou e patenteou em 1904 o que ela chamou de Landlord's Game ("Jogo do Proprietário", em português). Em um tabuleiro em forma de pista (uma novidade na época), várias ruas e monumentos eram colocados à venda. A inovação chave de seu jogo, porém, estava em duas regras que ela escreveu.

Sob o conjunto de regras "Prosperidade", cada jogador ganhava toda vez que alguém adquiria uma nova propriedade (com o objetivo de refletir a política de George de taxar o valor da terra), e o jogo era ganho (por todos!) quando o jogador que começou com menos dinheiro dobrasse a quantia.

Sob o conjunto de regras "Monopolista", era o contrário, os jogadores deviam comprar propriedades e coletar aluguel de todos que fossem azarados o suficiente para pousar ali - e quem quer que conseguisse levar o resto à falência virava o único vencedor (parece um pouco familiar?).

O objetivo de ter dois conjuntos diferentes de regras, dizia Magie, era fazer os jogadores experimentarem uma "demonstração prática do sistema atual de tomada de terras com todos os seus resultados e consequências" e talvez entender como diferentes abordagens em relação a posse de propriedade poderiam levar a resultados sociais tão diferentes.

"Pode muito bem ser chamado 'O Jogo da Vida'", afirmou Magie, "já que tem todos os elementos de sucesso e fracasso do mundo real, e o objeto é o mesmo que a raça humana em geral parece ter, a acumulação de riqueza".

O jogo logo se tornou um sucesso entre intelectuais de esquerda em centros universitários da Faculdade de Wharton, Harvard e Columbia e também entre comunidades Quaker, nas quais algumas regras foram mudadas e os nomes trocados por ruas de Atlantic City.

Entre os jogadores dessa adaptação Quaker estava um homem desempregado chamado Charles Darrow, que depois vendeu a versão modificada do jogo à empresa Parker Brothers como se fosse a sua criação.

Quando a verdadeira origem do jogo veio à tona, a Parker Brothers comprou a patente de Magie e relançou o jogo de tabuleiro com o nome Monopoly com um único conjunto de regras: o que celebra o triunfo de um sobre todos.

Pior do que isso, eles venderam o jogo afirmando que o inventor era Darrow, dizendo que ele havia sonhado com o jogo nos anos 1930, vendido-o à empresa e se tornado um milionário. A mentira ironicamente exemplificava os valores implícitos do Monopoly: persiga a riqueza e destrua seus oponentes se você quer sair por cima.

Então, na próxima vez que você for convidado a jogar Monopoly, eis uma ideia. Ao separar as cartas de sorte e as de cofre, faça uma terceira pilha para impostos sobre terras, para a qual todo proprietário de terra deve contribuir toda vez que cobrar aluguel de outro jogador.

Quão alta essa taxa deve ser? E como esse dinheiro deveria ser distribuído? Essas questões sem dúvidas levarão a um debate incendiário em torno do tabuleiro - mas era exatamente isso o que Magie sempre esperou que sua criação provocasse.

*Kate Raworth é uma pesquisadora visitante do Instituto de Mudança Climática da Universidade de Oxford e associada ao Instituto de Sustentabilidade e Liderança de Cambridge. Ela é a autora do livro "Doughnut Economics: Seven Ways to Think Like a 21st-Century Economist" ("Economias de Donuts: Sete Formas de Pensar como um Economista do Século 21", em tradução livre). Este artigo foi publicado originalmente na Aeon e republicado sob a licença de Creative Commons.