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Paralisação de caminhoneiros é um misto de greve e locaute, diz sociólogo do trabalho

Camilla Veras Mota

Da BBC Brasil em São Paulo

25/05/2018 19h52

A atual paralisação no transporte rodoviário brasileiro é um momento que ilustra como, no setor, os interesses de trabalhadores e das empresas podem se alinhar.

No momento em que uma crise afeta simultaneamente o faturamento de transportadoras e a renda de trabalhadores autônomos, demandas como o reajuste no preço do frete e a redução nos valores dos combustíveis podem facilmente se tornar pauta comum das duas partes.

Ao lado da fragilidade política do governo, essa particularidade explica por que, na avaliação do sociólogo do trabalho Ricardo Antunes, professor do IFCH/Unicamp, os cinco dias de paralisações que tomaram praticamente todos os estados do país são uma mistura de greve e locaute (quando há influência ou apoio das empresas).

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Na quinta-feira (24), o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, chegou a afirmar que há indícios de locaute. A Polícia Federal anunciou o início de uma investigação sobre a possível participação de empresas na paralisação.

A situação não é exclusiva do Brasil: aconteceu nos Estados Unidos nos anos 1970, quando a crise do petróleo fez explodirem os preços dos combustíveis, e no Chile, na mesma década, no movimento que culminou com a derrubada do governo de Salvador Allende, exemplifica o especialista, que foi professor visitante na Universidade Ca'Foscari, na Itália, e na Universidade de Sussex, na Inglaterra.

Estrutura peculiar

Nas últimas décadas, a automatização dos sistemas produtivos e a tendência de avanço da terceirização tirou poder de barganha de muitas categorias tradicionalmente organizadas, como a dos bancários. Os caminhoneiros, contudo, não passaram pelo mesmo processo de "mudança profunda" que diminuiu o poder dos movimentos sindicais.

"Eles vivem uma situação ainda muito parecida com a que viviam em décadas anteriores --ou eu tenho caminhão e preciso mantê-lo, ou sou empregado de uma empresa que tem caminhão e presta serviços."

O Brasil tem ainda uma especificidade: é mais dependente do modal rodoviário.

"Hoje, nós somos prisioneiros disso", diz o especialista, que publica ainda neste ano o livro "O Privilégio da Servidão - O novo proletariado de serviços da era digital", pela editora Boitempo.

A seguir, trechos da entrevista concedida à BBC Brasil.

BBC Brasil - O que a greve tem mostrado sobre a forma de organização da categoria dos caminhoneiros?

Ricardo Antunes - Em geral, essa é uma categoria que não tem uma solidariedade de classe construída, sólida. Muitas vezes, os caminhoneiros são os donos do caminhão e, por isso, frequentemente competem uns com os outros --mas se unem quando têm de negociar o preço do seu trabalho (o custo do frete).

Ela é também muito heterogênea. Não tem entidade central --uma espécie de 'Central Única dos Caminhoneiros'--, mas várias associações, e constrói suas greves muito pela via digital (Facebook e WhatsApp) e pelo contato nas estradas.

Os caminhoneiros formam uma categoria muito diferente, que tem experiência de greves em que foram um instrumental importante das classes patronais - usadas para desestruturar, por exemplo, o governo de Salvador Allende no Chile.

Em 1972, quando o país vivia um momento de crise, o locaute foi usado para criar um clima de instabilidade social e derrubar Allende.

Essa é uma categoria, em geral, muito despolitizada e, como depende do seu trabalho para sobreviver, seus interesses (como a redução do preço do combustível e aumento do preço do frete) estão muitas vezes ligados aos das empresas.

BBC Brasil - O senhor vê indícios de locaute nessa greve?

Antunes - Eu vejo, sim. Eu vejo um pouco dos dois. Como é uma greve que em poucos dias se tornou expressiva, e as empresas têm algo como 55% do controle desse transporte (frete rodoviário), muitas dessas paralisações podem ser decisão empresarial.

O restante, os 45% de caminhoneiros autônomos, são muito afetados pelo contexto de recessão, que diminui a circulação de mercadorias. Eles já estavam ganhando muito pouco, e o preço do combustível explodiu.

Acredito que há uma espécie de confluência nesse momento entre os interesses de empresas e caminhoneiros.

É importante lembrar que esse é um momento de crise profunda no Brasil, e que essa é uma categoria que, quando se olha na história - menos na do Brasil, mais na de países como os Estados Unidos, Alemanha e, mais recentemente, o Chile -, muito suscetível a uma influência patronal.

O dono de um pequeno caminhão, quando presta serviço para uma grande empresa, ele é, ao mesmo tempo, um pequeno proprietário de um bem de produção importante e uma espécie de 'proletário dos transportes'. Ele oscila entre esses dois.

BBC Brasil - Essa confluência aparece nas greves que vimos em anos anteriores, em 2015 e 2013, por exemplo?

Antunes - Não. Tanto é que esta foi muito rápida, muito expressiva. No começo da semana ela deu seus primeiros sinais e, em dois ou três dias, ela generalizou.

Nós precisamos estudar para entender exatamente o que está acontecendo. Pelo que estamos vendo hoje, ela é mais ampla e mais forte que as demais.

Primeiro, porque você tem um quadro crítico de recessão, que afeta o caminhoneiro e a empresa. Nós estamos vivendo um processo em que há locaute patronal - um momento de pressionar um governo 'em fim de feira' - e, ao mesmo tempo, uma greve de caminhoneiros independentes, que não estão conseguindo se manter.

É preciso depois, ao estudar esse movimento, ver o que é de fato locaute patronal e o que é um grito do caminhoneiro que não está aguentando mais sua situação.

BBC Brasil - Como o senhor vê o sindicalismo hoje, diante do impacto forte desse tipo de paralisação, feita sem organização central, e a mobilização de categorias tradicionais, como bancários e metalúrgicos?

Antunes - Não quer dizer que esses outros setores não façam greves. Eles ainda têm importância, não é que eles desapareceram. Nós vamos ter paralisações bancárias, metalúrgicas, de professores, porque o momento é de crise.

No caso dos caminhoneiros, eles ganham força quando há a confluência entre interesse das empresas e dos trabalhadores, ainda que não sejam necessariamente os mesmos. Isto ocorre em um quadro em que a fragilidade do governo é absoluta, que cria uma suscetibilidade maior a essas pressões.

O Brasil tem ainda uma especificidade, pelo desmonte dos sistemas ferroviário e fluvial, que poderiam ser muito mais intensamente utilizados, e que fizeram com que o transporte rodoviário fosse o principal mecanismo do circuito das mercadorias.

A nossa indústria automobilística pós-1955 sepultou em grande medida um belo sistema ferroviário que nós tínhamos no século 19, que era um pouco inspirado por uma certa presença inglesa no período aqui no Brasil, e que foi pouco a pouco sendo dilapidado para que a indústria automobilística se consolidasse. Hoje, nós somos prisioneiros disso.

Mas, seguramente, há uma perda de força do movimento sindical. Esse é um fenômeno mundial. O capitalismo mudou profundamente seu modo de vigência nas últimas quatro ou cinco décadas (com avanço da automação dos processos produtivos e da terceirização, por exemplo).

Os bancários de hoje são totalmente diferentes daqueles que fizeram greve em 1985 (que resultou na instituição da jornada diária de 6 horas de trabalho), que foi muito importante.

O mesmo processo de mudança profunda não aconteceu com os caminhoneiros. Eles vivem uma situação ainda muito parecida com a que viviam em décadas anteriores - ou eu tenho caminhão e preciso mantê-lo, ou sou empregado de uma empresa que tem caminhão e presta serviços.

O caminhão pode ser mais moderno hoje, mas ele depende basicamente do sistema rodoviário.

BBC Brasil - Como o senhor vê a tentativa de grupos pró-intervenção militar de influenciar os rumos da greve?

Antunes - Pelo menos no Ocidente, os caminhoneiros são, de forma geral, uma categoria muito suscetível às influências mais conservadoras. É importante dizer que eles não são sempre conservadores - e, hoje, nós podemos dizer que a categoria é muito heterogênea.

O que se coloca agora é que certamente tem forças que acham: 'Não vamos esperar as eleições de outubro. Vamos buscar uma alternativa fora da ordem'. Não tenho dúvida de que tem gente pensando nisso.

Por outro lado, é vital que haja também um movimento de apoio à nossa Constituição e que impeça qualquer movimento - que seria uma tragédia e uma loucura - que representasse um 'golpe de direita' e que arrebentasse as conquistas democráticas que, de um modo ou de outro, nós conseguimos desde a Constituição de 88.

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