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De falta de esgoto a moradores demais, os problemas de lares brasileiros que atrasam o desenvolvimento de crianças

Paula Adamo Idoeta - @paulaidoeta - Da BBC News Brasil em São Paulo

12/10/2019 08h25

Moradias de renda insuficiente, com excesso de pessoas, sem saneamento básico. A descrição se encaixa em um número considerado preocupante de lares brasileiros que abrigam crianças de zero a seis anos, com impactos sobre seu bem-estar, aprendizado e desenvolvimento ao longo de toda a sua vida futura - e com grande chance de isso se reverter em mais custos futuros para o Estado.

Das 18,4 milhões de crianças que o Brasil tinha em 2017, 41,3% delas habitavam casas com ao menos uma inadequação de saneamento, seja ausência de esgoto, abastecimento de água ou coleta de lixo. Quase um quarto das casas delas tinha ao menos uma inadequação de moradia, ou seja, sem banheiro próprio, paredes de materiais não resistentes, adensamento excessivo (mais de três pessoas dividindo cada dormitório) ou custos de aluguel que não cabiam no bolso da família.

No que diz respeito a renda, eram quase 2,8 milhões de crianças de zero a seis anos vivendo em lares com rendimento real per capita de no máximo US$ 5,50 por dia - linha de pobreza definida pelo Banco Mundial e equivalente, na cotação atual, a R$ 22 por pessoa por dia.

Os dados foram levantados na pesquisa do IBGE Pnad Contínua para a BBC News Brasil pelo economista Naercio Menezes Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper, que traçou um quadro sobre a vulnerabilidade de lares que abrigam crianças pequenas para o Simpósio Internacional de Equidade na Primeira Infância, realizado na última semana, em São Paulo.

De acordo com o levantamento, 5,4% dos lares com crianças pequenas estavam em situação de pobreza extrema, vivendo com o equivalente a menos de R$ 8 por dia por pessoa.

O ambiente em que a criança vive em seus primeiros anos de vida importa porque interfere diretamente em sua saúde e desenvolvimento cerebral em um período crucial: é na primeira infância que "o cérebro constrói a base das habilidades cognitivas e de caráter necessárias para o sucesso na escola, na saúde, na carreira e na vida", segundo costuma descrever o economista americano James Heckman, ganhador do Nobel e referência em pesquisas do desenvolvimento humano do ponto de vista econômico.

"Em um país como o Brasil, que chegou a ser a sétima economia do mundo, é muito impressionante que a gente não esteja investindo nessas crianças e não deixando que elas cresçam em ambientes minimamente protegidos", diz Naercio Menezes Filho.

"Essas crianças vão se tornar jovens e vão ter problemas de aprendizado, de evasão escolar - muito provavelmente muitas não vão concluir o ensino médio -, vão pegar um emprego informal, ou se tornar nem-nem (grupo que nem estuda, nem trabalha) e podem depender do Estado para o resto da vida", diz ele.

"O melhor é investir agora, resolver esses problemas (de condições básicas de vida), e economizar dinheiro no futuro. (...) A primeira infância tem a maior taxa de retorno no ciclo de vida das políticas públicas."

Um estudo da ONG britânica Shelter apontou que as crianças do país que viviam em condições inadequadas de habitação tinham maior chance de desenvolver problemas mentais, comportamentais e educacionais - e, em consequência, maior dificuldade em conseguir empregos e sair da pobreza.

A Unicef, agência da ONU para a infância, estima que o desperdício de potencial humano na primeira infância tenha impacto de 20% na produtividade futura dessas crianças quando adultas.

"O que acontece nesses primeiros anos é crucial para o desenvolvimento de qualquer criança. É um período de grande oportunidade, mas também de vulnerabilidade a influências negativas", diz a entidade. "Esforços para melhorar o desenvolvimento de crianças pequenas são um investimento, e não um custo. Intervenções indicam que para cada dólar investido em melhorar o desenvolvimento na primeira infância tem retorno de quatro a cinco vezes maior que a quantia investida, ou até mais em alguns casos."

A agência destaca, ainda, que a falta de acesso a condições sanitárias adequadas e maus hábitos de higiene chegam a responder, historicamente, por cerca de metade dos casos globais de desnutrição infantil - o que, por sua vez, também impacta negativamente o desenvolvimento cognitivo, motor e socioemocional das crianças, com efeitos diretos em seu desempenho escolar.

Diferenças regionais e raciais

Ainda segundo os dados levantados por Menezes, quase 42% dos brasileiros que moram com crianças pequenas têm rendimento domiciliar per capita de no máximo US$ 5,50 (R$ 22) por dia. E, apesar de viverem na pobreza, 14% dessas pessoas não recebem nenhum tipo de transferência de renda estatal.

O estresse que a pobreza e as condições inadequadas de habitação impõem sobre os adultos pode refletir nas crianças, explica o economista.

"É muito difícil morar em domicílios com adensamento excessivo, sem transferência de renda, sem saneamento. (...) Se mães sozinhas ficarem deprimidas por essa situação, será um fator importante, que dificulta sua interação (com os filhos) e prejudica o desenvolvimento infantil. Alguns estudos mostram que os problemas (de saúde mental) da mãe se transferem para os filhos."

Menezes identificou, também, significativas diferenças regionais entre as condições habitacionais de crianças pequenas.

Em Estados como Alagoas, Maranhão, Acre e Piauí, por exemplo, um terço das crianças pequenas vive em lares com renda efetiva diária de até US$ 5,50 - o dobro da média nacional.

As diferenças se evidenciam também no recorte racial. As inadequações em saneamento básico (acesso a esgoto, água ou coleta de lixo) afetam os lares de cerca de 30% de meninas e meninos brancos, mas o índice sobe para cerca de 50% entre meninas e meninos negros e pardos.

Outro levantamento prévio, feito pela Fundação Abrinq, também com base em dados do IBGE, aponta que o Brasil tem 9,4 milhões de crianças e adolescentes em situação domiciliar de pobreza extrema, ou seja, com renda per capita mensal inferior ou igual a um quarto do salário mínimo (quantia equivalente a R$ 250).

Perspectivas opostas

Menezes aponta que é possível enxergar os dados de pobreza sob duas perspectivas opostas: o quadro maior dá sinais positivos, enquanto o cenário de curto prazo é pessimista.

"Historicamente, houve uma redução muito grande na proporção (de lares vulneráveis), porque o Brasil vivia em situação de alta pobreza nos anos 1980 e 1990, sem mecanismos de proteção social e quando o saneamento era pior ainda", afirma.

"O Brasil melhorou muito desde a Constituição (de 1988) até agora. Mas a crise econômica pode ter contribuído para piorar um pouco (o cenário) desde 2015. O IBGE mostra que houve um aumento (na vulnerabilidade dos mais pobres) entre 2016 e 2017, provavelmente também entre as crianças. Alguns dados mostram que a desigualdade também aumentou nesse período."

Esse aumento foi contido, segundo Menezes, pela rede de políticas públicas e transferência de renda criada nas últimas décadas, incluindo o Bolsa Família, a expansão do Sistema Único de Saúde (SUS), seguro-desemprego e programas como Criança Feliz (de atendimento à primeira infância em lares vulneráveis) e Saúde da Família.

"Tudo isso serve para impedir que em momentos de crise você tenha um aumento muito grande" na pobreza, diz.

Desigualdade de oportunidades

Ao mesmo tempo, Menezes explica que essa soma de adversidades logo no início da vida impede que tantas crianças tenham condições de atingir seu pleno potencial para competir com quem teve suas necessidades básicas atendidas desde a primeira infância.

"Não existe meritocracia no sentido estrito do termo no Brasil, à medida que você tem tanta desigualdade de oportunidades", afirma Menezes.

"Talvez exista meritocracia entre as pessoas que já nascem sem esses problemas todos (relacionados à pobreza extrema), daí o esforço e a garra são recompensados. Mas quando você vê uma parcela grande de (crianças com) ao menos uma inadequação na moradia - essas crianças não vão ter igualdade de oportunidades, e se não conseguirem sucesso na vida não vai ser unicamente por causa do esforço delas, mas pelas condições em que cresceram (e o impacto disso) no desenvolvimento futuro delas."


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