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O plano de Nicolás Maduro para pegar carona nos dólares que circulam contra hiperinflação

O governo de Nicolás Maduro mudou de atitude em relação ao dólar - Reuters
O governo de Nicolás Maduro mudou de atitude em relação ao dólar Imagem: Reuters

Guillermo D. Olmo

Da BBC News Mundo

07/02/2021 12h22

A Venezuela dá mais um passo em direção à chamada "dolarização".

Após anos de rígido controle cambial e sanções contra quem compra dólares no mercado paralelo, o presidente Nicolás Maduro anunciou que os bancos venezuelanos poderão começar a receber depósitos em moeda estrangeira e facilitar seu uso para o pagamento de bens e serviços.

"As poupanças e contas correntes em moeda estrangeira estão sendo autorizadas", disse Maduro na rede de televisão estatal Telesur em 1º de janeiro. Segundo a agência de notícias Reuters, alguns bancos já começaram a emitir cartões de débito para seus clientes que possuem contas em moeda estrangeira.

Estima-se que mais de 55% das transações no país já sejam realizadas em dólares, tendência que está crescendo e que era tolerada pelas autoridades. Agora, previsivelmente, ela se acentuará com a autorização dos bancos.

A Venezuela sofre com a hiperinflação e a constante perda de valor do bolívar, a moeda nacional. Isso tem agravado os efeitos da crise econômica para a população, que busca cada vez mais o dólar e outras moedas como alternativa.

A moeda da Venezuela tem sofrido forte desvalorização - Getty Images - Getty Images
A moeda da Venezuela tem sofrido forte desvalorização
Imagem: Getty Images

Qual é o novo sistema?

"Na realidade, o governo está apenas reconhecendo uma prática que já existia para lhe dar um marco legal mais estável", afirma Luis Vicente León, da consultoria Datanálisis, à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.

Diante do crescente fluxo de transações em dólares, muitas empresas enfrentaram o problema de onde depositar o valor. Os bancos começaram no ano passado a oferecer as chamadas contas de custódia, com as quais ofereciam a possibilidade de guardar o dinheiro em seus cofres, mas não operar com ele.

Para empresas como supermercados em Caracas, que faturam grandes quantias de dólares todos os dias, esta foi uma solução parcial para colocar seus lucros em lugar seguro.

E os bancos venezuelanos conseguiram criar mecanismos que contornaram as restrições legais e permitiram que esses dólares fossem usados como garantia nas transações.

A novidade é que agora empresas e pessoas físicas poderão começar a usar esses dólares para adquirir bens e serviços por meios eletrônicos comuns de pagamento, como cartões de débito.

Henkel García, especialista da firma Econométrica, explica: "Na verdade, o que está por trás disso é uma operação de câmbio. O banco desconta do usuário os dólares em sua conta e dá ao comerciante o equivalente em bolívares de acordo com o câmbio do dia "

Segundo Luís Vicente León, "este sistema facilitará as transações, pois facilitará os pagamentos".

Na verdade, pagar por qualquer coisa costuma ser uma tarefa complicada no país. As notas de bolívares estão em falta há anos, e as falhas no fornecimento de energia e nas comunicações muitas vezes tornam os terminais de pagamento eletrônico inutilizáveis.

Apesar de haver cada vez mais dólares, quase não há notas pequenas nesta moeda, o que muitas vezes dificulta o pagamento do valor exato com ela.

Muitos dos dólares que chegam no país entram por meio do mercado ilegal - Getty Images - Getty Images
Muitos dos dólares que chegam no país entram por meio do mercado ilegal
Imagem: Getty Images

A mudança resolve os problemas?

"Ao facilitar as transações, o governo busca reativar a economia", diz Henkel García.

León aponta outro ponto-chave: "Como muitas operações agora se tornarão formais, o governo aumentará sua arrecadação tributária".

"O governo não teve escolha, pois ao obrigar as pessoas a usarem o bolívar, a única coisa que causava era um crescente mercado clandestino de dólares", acrescenta León.

Autorizar os bancos a operar com dólares e outras moedas representa mais um passo na linha de abertura que o governo venezuelano parece seguir nos últimos meses, divergindo um pouco de sua política estatista e de restrições à atividade privada.

Maduro promoveu recentemente a chamada "Lei Antibloqueio", com a qual pretende atrair investidores internacionais para impulsionar uma economia que perdeu mais da metade do seu valor desde que ele assumiu o poder. O país sofre bloqueios econômicos internacionais desde 2014.

No fim de janeiro, Jorge Rodríguez, considerado um dos dirigentes mais influentes do chavismo, se reuniu com os dirigentes da Fedecámaras, maior organização de empresários do país, com a qual o governo tradicionalmente mantinha relações conflituosas.

León afirma que "a economia está se abrindo, não porque o governo mudou de filosofia, mas porque perdeu a capacidade de controlar".

"Antes ele era dono de todos os dólares que entravam no país e tinha recursos para competir com o setor privado. Mas as sanções dos EUA deixavam o Estado sem acesso à moeda e sem poder operar no mercado internacional. Então agora o setor privado é a única coisa que resta para garantir o abastecimento do país."

Analistas destacam que, com o novo sistema, o governo busca reduzir os obstáculos à circulação do dinheiro, mas os obstáculos continuarão a ser muitos.

Coisas comuns em outros países, como transferir dólares de um banco para outro, ainda serão impossíveis.

"Isso exigiria a participação de um banco central como fiador desse sistema e o Banco Central da Venezuela está impedido de desempenhar esse papel por sanções internacionais", afirma Henkel García.

E a Sudeban (Superintendência das Instituições do Setor Bancário) venezuelana determinou que os bancos estão proibidos de conceder empréstimos em moeda estrangeira e lembrou que as entidades precisam de autorização prévia para suas operações, o que parece limitar o alcance dos anúncios de Maduro.

Em todo caso, alertam os especialistas, quem não se beneficiará das vantagens potenciais do novo sistema serão os muitos venezuelanos que só têm renda em bolívares, setor majoritário e desfavorecido da população.

Muitos mercados recebem pagamentos em notas de dólar - Getty Images - Getty Images
Muitos mercados recebem pagamentos em notas de dólar
Imagem: Getty Images

Mudança de tom no governo

O governo de Nicolás Maduro por anos proibiu o uso do dólar, que considerava uma moeda "criminosa" que o "império" dos EUA usava em sua "guerra econômica" contra a Venezuela.

Mas Maduro agora se refere a ele como uma "válvula de segurança" para a economia.

O fim do controle cambial em vigor no país há anos tornou a taxa de câmbio do mercado paralelo muito semelhante à do mercado oficial.

Ainda assim, Henkel García acredita que quem tem acesso a dólares "tem pouco incentivo para depositar suas economias em um sistema controlado por um governo que não inspira confiança".

"Os dólares que entrarem no sistema serão o mínimo necessário para as transações, mas as pessoas que conseguirem continuarão a poupar no estrangeiro ou ficarão com o dinheiro em casa".

A escassez dos cofres de um Estado esgotado por anos de políticas ineficientes e pelas sanções dos EUA fazem as pessoas ficarem cautelosas.

"Não parece provável neste momento, mas os governos latino-americanos sempre foram tentados a recorrer a um confisco", afirma Garcia.