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O que explica os salários milionários de presidentes de empresas?

Será que os altos salários vão continuar a ter espaço na sociedade pós-pandemia? - Alamy
Será que os altos salários vão continuar a ter espaço na sociedade pós-pandemia? Imagem: Alamy

Peter Yeung - BBC Work Life

25/02/2021 07h52

Por volta das 17h30 do dia 6 de janeiro de 2021, após 34 horas de trabalho no ano, os chefes das principais empresas britânicas receberam a mesma quantia que um trabalhador médio no Reino Unido ganha ao longo do ano inteiro.

De acordo com uma pesquisa do High Pay Centre, um think tank independente com sede em Londres, os presidentes das empresas listadas no índice FTSE 100 da bolsa de Londres ganham uma média de 3,6 milhões de libras por ano (R$ 27,6 milhões) — mais de 100 vezes a média de 31.461 libras (R$ 241 mil) recebida por trabalhadores em tempo integral.

No topo da lista de CEOs, está Tim Steiner, executivo-chefe do supermercado online Ocado, que ganhou 58,7 milhões libras em 2019. Isso representa 2.605 vezes a média dos funcionários da empresa. Em um dia, ele recebeu sete vezes o salário anual deles.

Do outro lado do Atlântico, a situação é ainda mais extrema. Uma análise do Economic Policy Institute, think tank com sede em Washington DC, mostrou que os CEOs das 350 maiores empresas dos EUA ganharam uma média de US$ 21,3 milhões (R$ 115 milhões) em 2019. Isso estabelece uma proporção de remuneração de 320 para 1 entre o CEO e os funcionários — mais de cinco vezes o nível em 1989.

Essas descobertas acontecem no momento em que a pandemia de covid-19 agravou a desigualdade em todo o mundo, expondo as populações de baixa renda a mais riscos à saúde, perda de emprego e declínio no bem-estar.

Essas diferenças se tornam mais nítidas do que nunca, à medida que cresce a consciência do valor dos trabalhadores "essenciais" — que costumam ter poucos direitos trabalhistas e baixos salários.

O resultado é uma perplexidade e indignação crescentes com os salários extraordinariamente altos que os chefes de grandes empresas continuam ganhando.

Com essas profundas desigualdades expostas, muitos se perguntam como esses enormes salários surgiram. Por quem e como eles são autorizados? E, acima de tudo, será que devem continuar a ter espaço na sociedade pós-pandemia?

As origens dos 'salários baseados em preços'

A disparidade salarial dos executivos tem origem nas políticas propostas na década de 1980 pelo governo Reagan nos EUA e Thatcher no Reino Unido. Suas filosofias políticas impulsionaram a desregulamentação, a privatização do setor público e o capitalismo de livre mercado.

Ambos também viam com maus olhos os sindicatos, que em última instância desempenharam um papel na capacidade reduzida dessas organizações de defender os trabalhadores.

"Se você voltar ao início desse período, era muito comum que o trabalho dos executivos fizesse parte do sistema geral de avaliação de cargos de uma empresa. Havia um sistema para avaliar o pagamento de todos", diz Sandy Pepper, especialista em remuneração de executivos da Universidade London School of Economics (LSE), no Reino Unido.

Mas, segundo ele, o sistema anterior "quebrou" quando a remuneração dos executivos foi conectada aos preços das ações e as "recompensas baseadas em ativos" decolaram sob o neoliberalismo vigente.

Uma análise feita por Pepper, com base em dados do FTSE 100 desde 2000, mostra que a remuneração de todos os funcionários aumentou em média cerca de 3% ao ano, enquanto a remuneração dos CEOs subiu aproximadamente 10% ao ano.

Segundo ele, a lógica subjacente era pagar o CEO de acordo com o desempenho financeiro da empresa, uma vez que eles eram o fator mais importante de sucesso.

Portanto, além dos salários, os CEOs recebiam bônus relacionados ao desempenho e opções de aquisição de ações, que permitiam a eles comprar ações da empresa por um determinado preço.

O pacote de remuneração de Steiner, CEO do Ocado, em 2019 incluiu um bônus de 54 milhões de libras pela realização de um "plano de incentivo ao crescimento" de cinco anos, que mediu o crescimento do preço das ações da empresa em relação ao FTSE 100. (O Ocado recusou o pedido para comentar)

Ao mesmo tempo, a proporção de empresas do Reino Unido que pertencem a indivíduos caiu drasticamente.

Os acionistas ganharam poder e sua demanda por preços de ações em alta levou a pacotes de remuneração elevados para CEOs — autorizados, por sua vez, por conselhos de administração ansiosos para agradar seus investidores.

Robin Ferracone, CEO da Farient Advisors, consultoria internacional de remuneração de executivos, concorda com esses salários "determinados pelo preço".

"Se você tem um bom CEO, o efeito multiplicador pode ser enorme", diz ela.

"Portanto, em princípio, o pagamento mediano por desempenho mediano e o pagamento elevado por alta performance fazem sentido."

Pisando em ovos

No entanto, na realidade, o sistema de cálculo da remuneração do CEO é mais complicado. As empresas contam com comitês de remuneração, compostos em sua maioria por conselheiros e executivos de outras empresas, que se reúnem uma vez por ano.

Além das medidores mais tradicionais de experiência prévia e performance, os comitês usam o benchmarking como uma parte fundamental do processo — observando como a remuneração do CEO se compara à de empresas semelhantes, de acordo com o ex-CEO Steven Clifford, autor do livro The CEO Pay Machine.

Geralmente, o montante estará no 50º, 75º ou 90º percentil, mantendo ou aumentando constantemente assim o salário, escreve ele.

Um estudo de 2010 do Journal of Financial Economics concluiu que esse sistema de comitês de remuneração está acelerando a inflação salarial "porque essas empresas semelhantes permitem justificar o alto nível de remuneração de seus CEOs".

Os bônus são então acordados como uma forma de medir a performance, aumentando com base em medidas financeiras ou pagos se metas específicas forem atingidas.

Tanto o processo da remuneração base quanto da bonificação são vistos pelos representantes dos trabalhadores como problemáticos, uma vez que os conselhos, por não quererem desagradar o dirigente da empresa que poderia pedir demissão ou demiti-los, aumentam o valor.

Janet Williamson, da Trades Union Congress do Reino Unido, argumenta que o sistema de comitês de remuneração, que geralmente se reportam diretamente ao CEO, carece de imparcialidade e deve ser reformado.

"Precisamos abandonar os salários relacionados ao desempenho — é isso que levou a esses aumentos", acrescenta.

Na verdade, Pepper argumenta que a evidência empírica mostra que a correlação mais forte entre o salário e as medidas financeiras da empresa não é o desempenho financeiro, mas sim o tamanho das companhias — simplesmente há mais dinheiro para gastar.

"Quanto maior a empresa, mais os CEOs são remunerados", diz ele.

'CEOs são a chave para o sucesso'

Se a remuneração do CEO é justificada, continua sujeito a um acirrado debate. Por um lado, os economistas do livre mercado argumentam que os altos salários dos executivos são justificados se estiverem alinhados aos interesses dos executivos e acionistas. Se as empresas estão dispostas a pagar essas quantias, eles dizem, esse é o valor que o mercado acredita que os executivos valem.

"Os CEOs são a chave para o sucesso", afirma Daniel Pryor, chefe de programas do Adam Smith Institute, think tank neoliberal.

"Está bastante claro que há um número limitado de pessoas com habilidades, personalidade e disposição para ser CEO de uma empresa de ponta, e esse número limitado de pessoas é altamente procurado."

Pryor cita os exemplos de Steve Jobs na Apple, Jeff Bezos na Amazon e Elon Musk na Tesla e SpaceX, talentos excepcionais que desenvolveram tecnologias revolucionárias a partir do zero.

No entanto, vários pesquisadores afirmam que o papel do CEO médio — um profissional com perfil gerencial que não fundou o negócio e não foi um visionário — é exagerado. Outros fatores são mais importantes para decidir o destino de uma empresa.

"Há vários motivos pelos quais uma empresa pode ter um bom desempenho", diz David Bolchover, especialista em remuneração de gestores que escreveu o livro Pay Check: Are Top Earners Really Worth It?.

"Talvez a economia ou o setor deles estejam aquecidos, o que não tem nada a ver com o CEO, talvez eles operem em um oligopólio. Pode ser a contribuição dos funcionários. O impacto de um CEO no desempenho da empresa não é mensurável, esse é o cerne da questão. Eles usam essa 'ideologia do talento' para justificar. Mas será que a habilidade deles é tão rara? Acho que é um engodo."

Bolchover diz que a crise financeira global de 2008 é um excelente exemplo de como performance e remuneração nem sempre estão alinhados.

"O setor financeiro sempre defendeu seus altos salários com base em suas raras habilidades e talento", afirma.

"Mas muitos desses bancos quebraram durante a crise, e as pessoas começaram a se perguntar — por que eles receberam tanto e continuaram a receber tanto mesmo depois da crise?"

De acordo com Bolchover, o "vórtice do interesse pessoal" entre acionistas, membros do conselho e executivos é o motivo pelo qual a remuneração dos CEOs não caiu — e, para ele, é por isso que há uma pressão crescente do público em geral.

'Um avanço dramático'

Enquanto os altos salários continuam de vento em popa, os direitos dos empregados parecem estar em uma trajetória descendente —especialmente para os trabalhadores da linha de frente em meio à pandemia.

Para muitos trabalhadores médios, essas cifras desproporcionais se tornaram cada vez mais difíceis de engolir.

A indignação da força de trabalho diante dessa disparidade salarial veio à tona no início do mês passado, quando milhares de funcionários da British Gas entraram em greve por cinco dias em resposta aos planos da empresa para reduzir a força de trabalho e transferir os funcionários para novos contratos com menos direitos.

As tensões já estavam se acumulando desde 2018 depois que o CEO da Centrica, a empresa dona da British Gas, recebeu um aumento salarial de 44% para 2,4 milhões de libras.

"É mais do que o primeiro-ministro ganha. Como eles podem justificar isso?", questiona John, um trabalhador de 32 anos da British Gas, cujo nome foi alterado devido a preocupações em relação à estabilidade no emprego.

(Por e-mail, um porta-voz da Centrica afirmou que o salário base do atual CEO da empresa é 19% menor do que o do CEO anterior e que, durante 2020, nem o CEO tampouco os diretores executivos receberam bônus anual ou quaisquer aumentos salariais.)

Há sinais, no entanto, de que o aumento da remuneração dos CEOs está pelo menos diminuindo. Paul Lee, que trabalhou como consultor de investimentos por 20 anos, diz que o salário dos CEOs no Reino Unido "estagnou" nos últimos anos, "mas o nível tem estado em torno de £ 4 a 5 milhões por vários anos".

Lee acredita que a mudança de mentalidade dos investidores institucionais e dos fundos soberanos está por trás da recente estagnação dos salários. Eles investem nessas empresas de alta remuneração, mas em última instância são financiados pelo público em geral — por meio de fundos de pensão e de investimento — e estão cientes da crescente inquietação.

"Esses números são justificados? É realmente difícil dizer objetivamente", diz ele.

"Mas há uma atmosfera crescente de prestação de contas. Em parte por causa do debate público, em parte pela pressão do governo."

Por exemplo, nos Estados Unidos, o projeto para a criação da Lei do Capitalismo Responsável da senadora Elizabeth Warren propõe limites de tempo para as vendas de ações de uma empresa, na tentativa de mudar o foco dos retornos de curto prazo para os acionistas para os objetivos de longo prazo de todas as partes interessadas.

Há também iniciativas como as de San Francisco e Portland, onde as empresas são tributadas se sua proporção de remuneração for muito alta, criando um incentivo econômico explícito para maior igualdade.

E, em meio à pandemia, executivos de grandes empresas, incluindo Boeing, Marriott International e PwC, sacrificaram voluntariamente parte de seus salários para salvar empregos de funcionários em 2020 — embora muitos critiquem isso como uma mudança simbólica.

Luke Hildyard, diretor do High Pay Center, diz que as empresas podem tomar outras medidas significativas para reduzir a disparidade salarial, como incluir a representação dos funcionários nos conselhos e aprimorar os relatórios dos dados de pagamento da empresa para aumentar a prestação de contas.

Os ganhos da empresa poderiam, então, ser distribuídos de maneira mais uniforme pela força de trabalho.

"Melhorar a vida dessas pessoas com incrementos relativamente pequenos de dinheiro pode ser transformador", diz Hildyard.

"Seria um avanço dramático."

Para Hildyard, as cifras dos CEOs são uma evidência "assustadora" da crescente divisão social.

"O Reino Unido é um dos países mais desiguais em termos de renda no mundo desenvolvido, e isso aumentou junto com o aumento dos salários dos executivos."

Ele argumenta que isso é importante porque as pesquisas mostram que países desiguais tendem a se sair mal em medidas que incluem coesão social, saúde pública e bem-estar, níveis de criminalidade e educação. Níveis mais altos de desigualdade significam que a sociedade sofre.

Com uma recessão econômica global no horizonte à medida que a pandemia se intensifica, Hildyard acredita que o "escrutínio da desigualdade" aumentará.

Ele diz que o papel crescente do setor financeiro, a terceirização de trabalhos mal remunerados e o declínio dos sindicatos estão por trás do aumento da desigualdade nas últimas décadas.

"Ao mesmo tempo, os que estão no topo não apenas mantiveram sua riqueza — mas a viram crescer enormemente", acrescenta.

"Se essa tendência continuar, a sociedade ficará ainda mais dividida e os trabalhadores vão sofrer."

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Work Life.