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Governo do Chile reluta em promover reformas polêmicas

Laura Millan Lombrana

23/05/2016 13h23

(Bloomberg) -- A presidente do Chile, Michelle Bachelet, ganhou a última eleição prometendo reformular praticamente todos os aspectos de uma das sociedades mais desiguais e conservadoras da América Latina. Seu discurso sobre o estado da nação, no sábado, mostrou que ela está revendo suas ambições dois anos após assumir, ainda com promessas fundamentais a cumprir.

Bachelet, socialista, divorciada, que foi torturada e exilada durante a ditadura militar de Augusto Pinochet, queria reduzir o legado econômico desse regime, elevando os impostos para financiar a educação, trazendo uma maior igualdade aos sistemas de pensões e de saúde e reforçando o poder dos sindicatos.

Após o sucesso inicial com uma reforma tributária e educacional, outras propostas estagnaram. A oposição alerta que elas ameaçam os 30 anos de prosperidade econômica do país mais rico da América do Sul. Cada ponto dos projetos de lei foi submetido a debates amargos em uma atmosfera de crescente desconfiança. Até mesmo projetos de lei sem relação com a economia, como o que despenalizaria o aborto em caso de estupro, estagnaram neste país que permitiu o divórcio há apenas 12 anos. Muitos, agora, enxergam o programa eleitoral de Bachelet como uma ambição utópica.

"A estratégia do governo era saturar a agenda de um Congresso que não tinha capacidade para processar suas demandas", disse o analista político Guillermo Holzmann, professor da Universidad de Valparaíso. "Isso gera mais desconfiança e mais incerteza e prejudica a credibilidade da administração".

Bachelet mencionou a palavra reforma 17 vezes no sábado, contra 48 vezes em seu primeiro discurso sobre o estado da nação de 2014.

"Há iniciativas que teremos que reprogramar porque precisamos considerar os recursos limitados e a necessidade de atingir acordos amplos", disse Bachelet.

Na gaveta

O governo está perdendo a vontade ou a capacidade de aprovar mudanças controversas. Após criar um comitê de 24 especialistas que realizou 65 sessões e produziu um relatório de 240 páginas sobre mudanças recomendadas para o sistema previdenciário, Bachelet não mencionou as reformas em seu discurso. Em vez disso, ela reiterou a promessa de levar adiante a criação de um fundo de pensões estatal. Contudo, todos os lados concordam que o setor precisa de uma mudança estrutural.

Pelo atual sistema de previdência privada, as mulheres chilenas, em média, chegam à idade de aposentadoria aos 60 anos com menos de US$ 30.000 em seu fundo de pensão, enquanto os homens se aposentam aos 65 com menos de US$ 60.000 em suas contas. A expectativa de vida no Chile é de 80,5 anos, a mais elevada da América Latina.

"Essas reformas são uma prioridade estratégica, elas são imperativas", disse Holzmann. "Mas essas reformas precisam de um acordo amplo antes mesmo de chegarem ao programa eleitoral".

Setor doente

Bachelet também não mencionou a reforma estrutural do setor de saúde do Chile, salientando, em vez disso, o plano de aumentar o investimento do governo para reduzir as desigualdades no sistema. O investimento do governo atualmente representa 50 por cento do gasto com saúde, apesar de o sistema público cobrir cerca de 80 por cento da população.

Há 23 médicos especialistas para cada 10.000 membros dos planos de saúde privados, contra sete no sistema público, disse Bachelet no sábado, prometendo diminuir a diferença para 50 por cento.

Contudo, não houve menção ao comitê que produziu um relatório de 200 páginas, em abril de 2014, recomendando uma série de mudanças no sistema.

Base divergente

Os problemas de Bachelet não vêm apenas da oposição. A base do governo cobre uma grande faixa do espectro político, abrangendo dos democratas cristãos, de centro, até o Partido Comunista.

"A presidente precisa mostrar para alguns que é mais reformista do que tem sido na prática; e para outros, provar a continuidade e a estabilidade", disse Robert Funk, analista político da Universidad de Chile, por telefone, de Santiago. "Ela enfrenta a oposição em si e também uma oposição dentro de sua própria base".

Embora a maior parte da base apoie o projeto de lei para legalização do aborto em caso de estupro ou ameaça à vida da mãe e da criança, muitos democratas cristãos se mantêm reticentes, o que está segurando o projeto no Congresso.

Michelle Bachelet, ex-subsecretária geral e ex-diretora-executiva da ONU Mulheres, conhecida oficialmente como Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres, é incapaz de fazer o projeto avançar com maior velocidade, deixando o Chile como um dos únicos seis países que proíbem o aborto sob todas as circunstâncias. Ela também não fez menção ao projeto de lei no discurso do sábado.

Ciclo eleitoral

Devido à chegada de um novo ciclo eleitoral, com eleições locais ainda neste ano e eleições presidenciais no fim de 2017, o governo está modificando sua mensagem, mudando o foco para o crescimento econômico e o esforço para ampliar a produtividade.

Um calendário anunciado em outubro para reformar a constituição herdada de Pinochet empurra a decisão final para o próximo governo, quando Bachelet terá pouco poder de decisão sobre o assunto.

O porta-voz do governo, Marcelo Díaz, disse que o governo já avançou bastante com a aprovação de mais de 170 leis e medidas em seus dois primeiros anos. Ele destacou medidas como a união civil entre pessoas do mesmo sexo, a reforma do sistema eleitoral e dos partidos políticos e a reformulação do sistema tributário.

"Muitas reformas apresentadas pela presidente são de grande complexidade técnica e outras envolvem um intenso debate político", disse Díaz. "Nos próximos dois anos o governo dará prioridade a alguns projetos para conseguir avançar em algumas iniciativas fundamentais".

Enquanto isso, o Chile continua sendo o segundo país mais desigual entre os 34 membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Segundo a última pesquisa da OCDE, a renda dos 10 por cento mais ricos do país é 26,5 vezes mais elevada que a dos 10 por cento mais pobres. A média da organização é de 9,5 vezes.

"Se não fizermos as mudanças juntos e agora, as tensões e os obstáculos aumentarão e frustraremos nossa oportunidade de progredir", disse Bachelet no sábado em Valparaíso. Enquanto ela falava, o céu se enchia de fumaça na cidade: manifestantes que protestavam haviam incendiado uma farmácia e repartições do governo nas imediações.