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No futebol chinês, o governo continua mudando as regras do jogo

Bloomberg News

16/06/2017 12h45

(Bloomberg) -- Imagine se, além de tudo, a presidência dos EUA entregasse a Donald Trump o poder de mudar as regras do esporte favorito dele. Não seria muito diferente do cenário que o futebol profissional está enfrentando na China, onde as autoridades transformaram o esporte em projeto nacional.

A China usou o vasto poder do Estado para apoiar o futebol em 2015, quando o presidente Xi Jinping, o fã mais poderoso desse jogo, anunciou um plano para transformar o país em referência mundial do esporte que ele jogou quando era estudante. Os principais times da China reagiram a isso gastando centenas de milhões de dólares na contratação de estrelas estrangeiras, como o atacante brasileiro Hulk e o argentino Carlos Tévez, com a esperança de que o nível superior de jogo acabasse chegando à seleção nacional e ajudasse a construir ligas de classe mundial da noite para o dia.

Mas agora, de repente, uma série de alterações nas políticas, que exigem que jovens jogadores chineses preencham as equipes titulares, reduziu o valor desses investimentos e colocou os proprietários dos clubes em um dilema em relação ao tipo de equipe que poderão colocar em campo. A atitude também levou muitas pessoas próximas ao esporte a questionarem abertamente se o governo sabe realmente o que é melhor para o esporte conhecido como jogo bonito.

"O governo deveria respeitar as regras do mercado em vez de promover o excesso de regulamentação", disse Tony Xia, empresário chinês que ganhou as manchetes no ano passado ao comprar o clube de futebol inglês Aston Villa. Xia deu entrevista em uma conferência de futebol, na semana passada, em Pequim, na qual altos funcionários de diversos clubes criticaram as mudanças de regras impostas em janeiro, e depois novamente no mês passado.

A primeira encarnação do futebol foi inventada na China, há mais de 2.000 anos, como um exercício de treinamento militar -- os jogadores chutavam uma bola de couro a gol, esquivando-se dos adversários sem usar as mãos --, mas a história antiga não gerou uma tradição vencedora no esporte moderno.

A China participou da Copa do Mundo apenas uma vez nos 84 anos do torneio, em 2002, quando a equipe encerrou a campanha sem vencer e sem marcar gols em nenhuma de suas três partidas. A seleção masculina da China recentemente ficou classificada em 82o lugar no ranking da Fifa, logo acima das Ilhas Feroe, um arquipélago remoto com menos de 50.000 habitantes.

As esperanças de conseguir uma vaga na Copa do Mundo do ano que vem foram praticamente dizimadas nesta semana, quando a China sofreu um gol no último minuto de uma partida das Eliminatórias e acabou empatando em 2 a 2 com a seleção da Síria, um país assolado pela guerra.

Desde 2015, contudo, quando o presidente Xi anunciou seu grande plano destinado a conseguir respeitabilidade para a China no futebol internacional, o país canalizou para esse esporte um tipo de energia antes reservada à conquista de medalhas olímpicas em competições individuais, como ginástica, natação e mergulho.

O futebol se tornou parte do ensino obrigatório nas escolas primárias e secundárias. Dezenas de milhares de campos de futebol estão em construção. A China Evergrande Group, uma gigante do ramo imobiliário, investiu um total estimado em US$ 185 milhões na construção da maior escola de futebol do mundo, um enorme campus que parece uma réplica de concreto da Escola de Hogwarts de Harry Potter, rodeada por 50 campos de treinamento. (Uma réplica de quatro andares do troféu da Copa do Mundo, que ficava na entrada da escola, teve que ser desmontada devido a problemas de uso de marca registrada).

Enquanto isso, os maiores times do país responderam ao chamado de Xi Jinping com uma série de investimentos, oferecendo salários descomunais a jogadores sul-americanos e europeus para acelerar seus programas. Em janeiro, o meio-campista brasileiro Oscar, reserva do Chelsea, campeão da Premier League inglesa, se transformou em um dos jogadores mais bem pagos do esporte ao assinar contrato com o Shanghai SIPG por US$ 25,5 milhões por ano.

As equipes da Super Liga Chinesa, a primeira divisão do país, gastaram mais de US$ 450 milhões com contratações de jogadores estrangeiros em 2016. A China superou a França e se tornou o quinto país do mundo em gastos.

Foi aí que o governo começou a dizer aos diretores das equipes como deveriam administrar seus clubes.

Em janeiro, a Administração Geral de Esportes da China emitiu um comunicado recomendando aos times que deixassem de "gastar de forma irresponsável". A Associação Chinesa de Futebol decidiu na sequência que as equipes deveriam ter pelo menos um jogador chinês com menos de 23 anos em sua equipe titular. E que os técnicos poderiam iniciar os jogos com apenas três estrelas importadas -- em vez de quatro, como estipulado nas regras antigas.

E então, justamente quando as equipes estavam se ajustando ao novo regime, as regras mudaram novamente. No mês passado, a associação de futebol informou que os técnicos agora teriam que mandar a campo pelo menos um jogador chinês com menos de 23 anos para cada estrangeiro presente no time titular -- outro ajuste realizado para garantir que as ligas profissionais da China tenham jogadores chineses.

Como se não bastasse, os clubes foram informados que terão que pagar um novo imposto pelo luxo. Para cada dólar gasto em uma estrela importada, os clubes agora podem ter de colocar a mesma quantia em um fundo do governo criado para promover o programa futebolístico da China -- efetivamente dobrando o preço dos talentos internacionais e lançando uma grande sombra sobre a janela de transferências do futebol, que começa oficialmente na segunda-feira.

Mads Davidsen, chefe de desenvolvimento de treinamentos do Shanghai SIPG, o clube que levou Oscar neste ano para a China, estava entre as figuras do esporte que participaram da conferência da semana passada e questionaram o que descreveram como uma intromissão do governo.

Isto "sem dúvida diminuirá o nível do esporte", disse ele.

As novas regras, disse Davidsen, podem acabar subvertendo as próprias metas do governo, porque as futuras estrelas da China não conseguirão se desenvolver se não competirem contra os melhores jogadores possíveis.

Representantes da Administração Geral do Esporte e da Associação Chinesa de Futebol preferiram não comentar o assunto.

Xia, o dono do Aston Villa que neste ano também fechou a compra de um estúdio de cinema de Hollywood, disse que a intervenção estatal provavelmente será um tiro pela culatra, como ocorreu no mercado de ações, quando as autoridades adotaram medidas atrapalhadas para impedir crises em 2015 e 2016 e só pioraram a situação.

"Precisamos de diretrizes e não de novas regras cada vez que a situação muda", disse ele.

Uma consequência não intencional das ações do governo serão os preços mais elevados dos jogadores mais jovens, que de repente estão em uma demanda muito maior, segundo Gong Lei, presidente do Chongqing Dangdai Lifan Football Club, uma equipe com menos dinheiro que alguns outros. "Os clubes de pequeno e médio porte, especialmente, terão dificuldades para lidar com isso", disse Gong, que jogou pela China na Copa do Mundo Fifa Sub-20 de 1985.

Gong disse que seu clube negocia a compra de várias equipes de ligas inferiores na França e na Bélgica para desenvolver um programa de treinamento para seus próprios atletas.

Li Yidong, presidente do conselho da China Sports Media, que pagou o equivalente a US$ 1,2 bilhão por cinco anos de direitos de transmissão dos jogos da liga, disse que deseja renegociar o contrato com a associação de futebol porque a qualidade do produto comprado provavelmente diminuirá.

"Não foi por isso que nós pagamos", disse ele, em entrevista, na semana passada, em seu escritório, em Pequim.