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Como uma empresa recebeu US$ 2,7 milhões para fazer um cinto que já existia

Smart Belt da primeira campanha; valor do financiamento começa em US$ 59 e dá direito a um exemplar do cinto - Divulgação/Harmattan Design
Smart Belt da primeira campanha; valor do financiamento começa em US$ 59 e dá direito a um exemplar do cinto Imagem: Divulgação/Harmattan Design

Juliana Carpanez

Do UOL, em São Paulo

07/07/2018 04h01

Com experiência na produção de bolsas de couro, uma empresa sediada nos Estados Unidos decidiu apostar também no mercado de cintos. Para isso, associou seu design a um modelo já existente do acessório e apresentou o projeto em um site de financiamento coletivo. Pediu US$ 5.000 (cerca de R$ 19,7 mil). Arrecadou US$ 1,55 milhão (cerca de R$ 6,11 milhões). Um ano depois, voltou à vaquinha virtual, basicamente para expandir a cartela de cores de seu produto. Queria inicialmente US$ 10 mil (cerca de R$ 39,44 mil). Passou do US$ 1,15 milhão (cerca de R$ 4,54 milhões). Ou seja: recebeu mais de US$ 2,7 milhões (cerca de R$ 10,65 milhões) dos consumidores para lançar seus próprios cintos. 

O fato de a companhia ter extrapolado as metas duas vezes --em mais de US$ 1 milhão (cerca de R$ 3,94 milhões) cada-- levanta algumas dúvidas. Como conseguiu tanto dinheiro para um acessório que já existia, sendo fabricado por vários concorrentes? Sites de financiamento coletivo não deveriam ser dedicados a projetos totalmente inovadores? Se a primeira campanha foi tão bem-sucedida, por que fazer a segunda?   

Antes de chegar às respostas, uma breve explicação sobre esse tipo de cinto. Seu chamariz é um sistema de “microajuste”, que dispensa os tradicionais furos: geralmente são cinco deles separados em espaços de uma polegada (2,54 cm). Já a alternativa usa uma espécie de trilho, na parte traseira do acessório, com mais de 30 encaixes (a distância entre eles cai para 0,6 cm). Isso oferece mais conforto ao usuário, que consegue ajustar o exato tamanho de sua cintura --mesmo durante o dia, se houver variações após as refeições. Como descreve a Harmattan Design, responsável pelas campanhas já mencionadas, trata-se do “maior salto na tecnologia de cintos... desde... bem... uma corda amarrada em sua cintura”. 

Cinto smart belt2 - Divulgação/Harmattan Design - Divulgação/Harmattan Design
Sistema de trilho na parte traseira do acessório oferece conforto, pois permite ajustar o tamanho exato da cintura
Imagem: Divulgação/Harmattan Design

Além do microajuste, outra característica compartilhada por esses produtos é o tamanho único. Com isso, o próprio usuário pode cortar uma das pontas do cinto, se ficar muito grande, e nesta extremidade prender a fivela --dispensando assim a necessidade de acabamentos. Acessórios desse tipo existem aos montes, em sites de comércio eletrônico dos EUA e da China, muitos deles por menos de US$ 10 (cerca de R$ 39,4).  

Ainda assim, a arrecadação para viabilizar o projeto do Smart Belt (cinto inteligente) impressiona. Em 2017, os apoiadores investiram US$ 1,17 milhão (cerca de R$ 4,62 milhões) no Kickstarter e mais US$ 374,9 mil (cerca de RUS$ 374,9 mil (cerca de R$ nbsp;1,5 millhão) no Indiegogo --a contribuição inicial de US$ 59 (cerca de R$ 232,7) dava direito a um cinto. Em 2018, a companhia voltou ao Kickstarter para lançar a versão 2.0, com mais opções de cores e de fivelas. A 14 dias do final da segunda campanha, o valor arrecadado já passa de US$ 1,15 milhão (cerca de R$ 2,3 milhões).  

Veja o sistema de microajuste em um cinto da Anson Belt & Buckle

UOL Notícias

De onde vem o dinheiro?

Celso Henrique Sartori, professor de marketing do Insper, explica o sucesso da arrecadação: “Os criadores são designers conhecidos, quase artesões. Eles criaram uma conexão emocional com pessoas que acreditam neles e veem aquele objeto quase como uma peça de arte. Algo bem feito, que vai durar a vida toda. As pessoas precisam acreditar na ideia para quererem participar do projeto, inclusive financiando.”

Nesta linha, o especialista com passagens pela Coca-Cola e Nike cita a palestra “Como grandes líderes inspiram ação”, do evento TED, em que o autor Simon Sinek apresenta o conceito do círculo dourado. Segundo ele, os inspiradores sabem qual seu propósito e conseguem transmiti-lo. “Pessoas não compram o que você faz, elas compram o porquê você faz”, afirma Sinek. Ele cita como exemplo a Apple, que reforça a ideia do “pensar diferente” ao projetar seus eletrônicos. 

cinto Smart Belt  - Divulgação/Harmattan Design - Divulgação/Harmattan Design
90% dos apoiadores da 2ª campanha no Kickstarter haviam financiado a primeira
Imagem: Divulgação/Harmattan Design

No caso dessa campanha de financiamento coletivo, Sartori destaca também a importância de encontrar um nicho. “Possivelmente são pessoas ligadas ao design, que souberam entender o produto. Eles devem ter uma boa rede de influenciadores e falaram com o público certo. Encontraram uma tribo, fazendo algo cirúrgico. Essas pessoas não querem algo que podem comprar na Amazon, mas sim algo exclusivo, que conte uma história.”

O nicho fica evidente na categoria em que a Harmattan Design inscreveu seu projeto no Kickstarter: design de produto. Ainda assim, a empresa divulga que seu cinto tem o recorde de financiamento entre os acessórios de moda, categoria da qual não faz parte. Nesta lista, curiosamente, o líder (com US$ 583,5 mil ou cerca de R$ arrecadados) é outro cinto sem furos: o Magbelt, com fecho magnético.

Produto 'forte'

Radu Zarnescu, designer responsável pelo Smart Belt, afirmou em entrevista por e-mail que uma campanha bem-sucedida precisa basear-se em um “produto forte”. Sua criação atende a esse critério, segundo ele, por usar um tipo exclusivo de couro, com curtimento vegetal, produzido em um vale na Toscana (Itália). O material vem com certificado de autenticidade e número de série.

Zarnescu cita ainda o uso de kevlar (material ultrarresistente da Dupont utilizado até em coletes à prova de bala), que mantém a estrutura do produto, além do design das fivelas, “superior ao dos outros”. “Poderíamos falar mais sobre o que nos torna diferentes, mas isso envolveria dar exemplos dos concorrentes, o que evitamos fazer”, escreveu.

Questionado sobre a necessidade de inovação nos itens apresentados, o Kickstarter afirmou que “fazer melhoras em produtos já existentes está dentro de nossas regras”. Candice Pascoal, diretora-executiva do site brasileiro de financiamento Kickante, está de acordo. “O projeto precisa apenas seguir as leis do país e, para dar certo, precisa ter demanda. Em meu livro, digo que a originalidade está em fazer algo diferente, não necessariamente novo”, afirma a autora de “Seu Sonho Tem Futuro” (editora Gente).

O conceito da vantagem de ser o segundo é algo bastante difundido nos EUA. Ao ser o segundo em um segmento, você chega a um mercado com alguma maturidade e consegue aprender e evoluir com os erros dos que chegaram primeiro

Candice Pascoal, diretora-executiva da Kickante

Críticas e crescimento

A existência de tantos produtos semelhantes ao Smart Belt deu origem a críticas na internet, que não chegaram a ter muita repercussão. Em um post, um programador classificou a campanha de fraudulenta, comparando o Smart Belt a acessórios parecidos e bem mais baratos vendidos por atacado no site chinês Alibaba --o UOL enviou e-mail para entrevistar alguns desses fabricantes, mas não obteve resposta. 

Anson Belt & Buckle começou a vender cintos com sistema de microajuste em 2010 - Divulgação/Anson Belt & Buckle  - Divulgação/Anson Belt & Buckle
Anson Belt & Buckle começou a vender cintos com sistema de microajuste em 2010
Imagem: Divulgação/Anson Belt & Buckle

David Ferree é cofundador da Anson  Belt & Buckle, empresa norte-americana que vende cintos com sistema de microajuste desde 2010. Ele faz coro às críticas e classifica como confusa a existência de financiamento coletivo para esse tipo de produto já disponível no mercado.  

A prática de uma mesma companhia recorrer repetidas vezes ao financiamento coletivo também pode causar estranhamento se uma meta foi amplamente superada: se conseguiram tanto, por que pedir mais dinheiro? “Percebemos que poderíamos transformar nosso estúdio de design em uma marca real, o que pode exigir mais uma ou duas campanhas. Poucas start-ups conseguiram sair do Kickstarter e virar uma empresa séria”, afirmou Zarnescu, apontando para o crescimento da companhia.

Candice afirma tratar-se de algo comum. “Na Kickante, temos criadores com mais de cinco campanhas bem-sucedidas lançadas uma após a outra. A principal motivação, a meu ver, é o sentimento de que há uma demanda e a vontade de suprir os pedidos do mercado sem risco e sem custos operacionais de e-commerce. Por que mudar uma estratégia que está dando certo?”  

Uma ideia, muitas origens

A origem dessa ideia de microajuste é desconhecida. Segundo Ferree, seus advogados disseram que não era possível patentear o cinto com sistema de trilhos por ser um conceito “aberto” (“free market design” é a expressão que ele usa) --o produto já era comercializado antes, sem patente. No entanto, há um processo desse tipo nos Estados Unidos, da Kore contra a Nextbelt (também fabricante de um cinto com microajuste). A definição da história envolvendo essas duas empresas está prevista para julho de 2019.

David Ferree conta que seu pai conheceu esse cinto durante uma viagem à China, em 2006, quando adquiriu dois modelos. De volta aos EUA, quis comprar o acessório para presentear os amigos, mas não encontrou em nenhuma loja: foi quando decidiu que venderia esse produto. Pai e filho amadureceram o projeto, redesenharam a fivela, criaram um site e começaram as vendas online em 2010. O filho manteve outro emprego e as vendas iam devagar, mas ele afirma que seu pai acreditava no negócio: “Ele sabia que esse conceito decolaria e precisávamos nos manter firmes no mercado”. 

Cinto com sistema de trilhos da Mission Belt, que recebeu financiamento após participar de programa na TV - Divulgação/Mission Belt - Divulgação/Mission Belt
Cinto com sistema de trilhos da Mission Belt, que recebeu financiamento após participar de programa na TV
Imagem: Divulgação/Mission Belt

Essa virada aconteceu em abril de 2013, quando um homem chamado Nate Holzapfel apresentou no programa de empreendedorismo “Shark Tank”, na TV dos EUA, o projeto da Mission Belt: um cinto sem furos, com um sistema de trilhos para o ajuste perfeito. Ferree já tinha ido dormir quando começou a receber mensagens de seus amigos, contando sobre o programa: “Quando vi, meu coração afundou. Percebi que havia perdido uma grande oportunidade”.

Aqui um parênteses. Também após o programa, um usuário do fórum Reddit postou um textão com o seguinte título (em inglês): “Meu primo mentiu para o meu irmão, roubou sua ideia e secretamente se tornou um concorrente, e ele [o irmão] não sabia até ver tudo no Shark Tank”. Segundo o usuário, que não se identifica e divulga o site do Slide Belts, a ideia do cinto sem furos veio da Europa, quando seu irmão estava em uma missão pela igreja. Mostrou o produto para a família, que decidiu apostar no negocio até “seu primo esfaquear meu irmão pelas costas”. Fecha parênteses.  

Holzapfel conseguiu o financiamento e, com a divulgação do produto, Ferree diz que suas vendas começaram a engrenar. “No final, a aparição do Mission Belt foi ótimo para nós: apresentou o cinto a milhões de pessoas, que começaram a fazer buscas [na internet] e nos encontraram. Fiz um post sobre o tema, e o tráfego do nosso site aumentou muito com as pessoas procurando o cinto que viram na TV.” 

Ele largou seu outro emprego, passou a dedicar-se exclusivamente aos negócios da família, investiu em anúncios de rádio, em parcerias com influenciadores digitais e percebeu que, em um único mês, suas vendas triplicaram: a fabricação é na China, e as vendas diárias ficam entre 75 e cem unidades. Em novembro de 2017, em um cenário de crescimento, a Anson Belt & Buckle contratou seu primeiro funcionário, um amigo de infância de Ferree. "Esse conceito já pegou e é bem mais popular hoje do que há nove anos, quando chegamos ao mercado", conclui.