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Reformar Previdência pode criar geração de inaposentáveis, diz ex-ministro

Economista Nelson Barbosa, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento do governo Dilma Rousseff (PT), na sede da FGV (Fundação Getúlio Vargas), onde é professor, em Brasília - Pryscilla K. Dantas/UOL
Economista Nelson Barbosa, ex-ministro da Fazenda e do Planejamento do governo Dilma Rousseff (PT), na sede da FGV (Fundação Getúlio Vargas), onde é professor, em Brasília
Imagem: Pryscilla K. Dantas/UOL

Wellington Ramalhoso

Do UOL, em São Paulo

05/06/2019 04h01Atualizada em 05/06/2019 16h02

Resumo da notícia

  • Ex-ministro da Fazenda e do Planejamento analisa a proposta de reforma da Previdência
  • Para Barbosa, há pontos que precisam de ajuste, caso contrário prejudicariam os pobres
  • Ex-ministro comenta sua atuação no governo Dilma e opina sobre estagnação econômica

Nelson Barbosa, economista ligado ao PT e último ministro da Fazenda do governo Dilma Rousseff, afirma que a reforma da Previdência é necessária e será aprovada.

Para ele, no entanto, o projeto do governo Jair Bolsonaro (PSL) contém pontos que representam um retrocesso e, se for aprovado sem modificações, pode gerar uma crise social, com a formação de uma geração de "inaposentáveis".

"São pessoas que não vão conseguir [se aposentar] porque trabalham no mercado informal, têm dificuldade de comprovar 20 anos de contribuição [regra proposta pelo governo]. Mesmo quando chegarem aos 65 anos [idade mínima para homens], não vão conseguir comprovar o tempo de contribuição", diz o ex-ministro em entrevista ao UOL (confira abaixo).

Na opinião de Barbosa, o governo também erra ao propor um regime de capitalização -- em que o trabalhador tem de juntar sozinho o dinheiro de sua aposentadoria. O economista afirma que, nos países em que foi adotado, este sistema produziu "benefícios muito abaixo do esperado, jogando muitos idosos na linha da pobreza".

Mesmo que estes e outros itens sejam retirados da proposta durante a tramitação, ele afirma que o Congresso tem a chance de realizar uma reforma com avanços que ninguém conseguiu fazer "nos últimos 25 anos". O ex-ministro participou de discussões no PT sobre a reforma e apoiou a decisão da bancada do partido na Câmara de apresentar emendas à proposta governista.

O economista ocupou cargos no Ministério da Fazenda durante o governo Luiz Inácio Lula da Silva. Depois, na gestão Dilma, foi ministro do Planejamento de novembro de 2014 a dezembro de 2015, quando assumiu o comando da Fazenda - foram seis meses neste posto até o impeachment da petista. Atualmente, ele é professor da FGV (Fundação Getúlio Vargas) e da UnB (Universidade de Brasília).

Confira abaixo os principais trechos da entrevista em que Barbosa também fala sobre PIB (Produto Interno Bruto) e desemprego, cujos índices foram divulgados na semana passada, e as circunstâncias que deram início à crise no governo Dilma.

UOL - O sr. tem dito que a reforma da Previdência é necessária e que ela será feita. Por que ela é necessária?

Nelson Barbosa - Porque temos uma mudança demográfica em curso que requer que o sistema previdenciário seja adaptado à nova estrutura da população. Não é só o Brasil que tem esse desafio. Outros países estão enfrentando um processo de envelhecimento que vai botando mais pressão em programas previdenciários. Isso exige um ajuste de questões como idade, tempo de contribuição e valor de benefício.

Além disso, nosso sistema tem muitas injustiças. As pessoas mais ricas se aposentam mais cedo e com benefícios bem maiores, e isso precisa ser corrigido. Nossas regras acabam gerando muitos benefícios para alguns segmentos, principalmente no setor público, e precisam ser revisadas.

O projeto enviado pelo governo ao Congresso está próximo ou distante da reforma que o sr. defende?

Está distante porque o projeto do governo propõe uma reforma do sistema atual de repartição, que acho necessário, mas ao mesmo tempo propõe uma segunda reforma que é acabar com a repartição em prol do sistema de capitalização, sem nenhuma contribuição das empresas, o que eu acho um erro.

Nota do editor: Os detalhes do sistema de capitalização ainda não foram divulgados pelo governo de maneira oficial. O ministro da Economia, Paulo Guedes, em audiência na Câmara nesta terça-feira, se colocou contra a contribuição de empresas.

Reformar o sistema de repartição já é um tema debatido há mais de 25 anos e hoje a maioria das pessoas concorda com alguns pontos como estabelecer idade mínima com regras de transição, elevar o tempo de contribuição, ajustar o valor de benefício de acordo com o tempo de contribuição. São fatores debatidos desde meados da década de 1990 e gradualmente a maioria das pessoas se convence de que pode e deve ser feita uma reforma.

Esta parte de reforma do sistema está na direção certa, mas com a dose errada. Precisa ajustar a dose, a velocidade da transição.

Tem algumas regras [no projeto do governo] que penalizam os mais pobres, a regra do BPC (Benefício de Prestação Continuada), do [trabalhador] rural, dos professores, que precisam ser revisadas.

Nota do editor: Após esta entrevista, na noite desta segunda-feira, os senadores negociaram mudanças que aumentam prazo para trabalhadores rurais se adaptarem às novas regras propostas na reforma da Previdência.

A proposta do governo também tem outro item que diz que haverá uma lei no futuro em que vai se substituir o sistema de repartição pelo sistema de capitalização, um novo sistema. Não vai mais ser Previdência Social, vai ser previdência individual. Cada um vai ter que poupar sua própria aposentadoria através de contas individuais e sem contribuição das empresas. O [regime] individual não pode ser substituto do social. É um sistema que normalmente é complementar à Previdência, e não substituto.

Onde o regime de capitalização foi adotado de uma maneira mais generalizada para tentar substituir a Previdência Social, essa medida trouxe mais problemas. Trouxe uma poupança insuficiente, benefícios muito abaixo do esperado, jogando muitos idosos na linha da pobreza. E trouxe também um grande custo de transição porque, quando você muda do regime de repartição para o regime de capitalização, você continua tendo que financiar a geração passada e a geração corrente ainda pelo sistema de repartição. O custo de transição acaba sendo fiscalmente muito alto.

Essa parte penosa, que não é ponto de consenso no debate e não figurava entre as principais alternativas que tinham sido discutidas nos últimos anos, seja pelo lado da esquerda, seja pelo lado da direita, eu acho um retrocesso.

Quais serão as consequências se a proposta do governo for aprovada na íntegra?

Primeiro, aumentando o tempo de contribuição para 20 anos, você vai criar uma multidão de "inaposentáveis". São pessoas que não vão conseguir porque trabalham no mercado informal, têm dificuldade de comprovar 20 anos de contribuição. Mesmo quando chegarem aos 65 anos [idade mínima para homens], não vão conseguir comprovar o tempo de contribuição para se aposentar pela Previdência. E também podem não ter a renda mínima para se qualificar para o BPC. Pode criar uma geração de pessoas "inaposentadas" e aumentar a pobreza entre os idosos.

Em segundo lugar, do que jeito está sendo feita a transição, com regras muito duras, ela tem uma descontinuidade muito grande. Então, isso vai gerar insegurança jurídica, gerar contestação judicial. E eventualmente [um conjunto de contestações] vai chegar no Supremo [Tribunal Federal].

E do jeito que a proposta está, criando o regime de capitalização, você vai criar uma grande crise fiscal no Brasil imediatamente. O custo de transição será muito alto, e [haverá] uma grande crise social dentro de algumas décadas quando as pessoas no regime de capitalização chegarem na idade de se aposentar perceberem que a poupança que elas têm se revelou insuficiente. Então, vai ser necessário o governo compensar isso com programas de transferência de renda para combater a pobreza, aumentando ainda mais o custo fiscal [da reforma].

Nelson Barbosa, ex-ministro da Fazenda - Pryscilla K. Dantas/UOL - Pryscilla K. Dantas/UOL
Para Nelson Barbosa, governo deveria rever limites fiscais criados no governo Temer como o teto de gastos
Imagem: Pryscilla K. Dantas/UOL

O governo fala que o projeto de reforma representaria uma economia de mais de R$ 1 trilhão em dez anos. Na sua opinião, deve-se buscar uma economia de que valor?

Acho que o foco em números nesse momento é equivocado. A Previdência é um problema fiscal, é um problema de equilíbrio orçamentário, mas Previdência também é gente. Só enfatizar essa cifra mágica de R$ 1 trilhão em dez anos acaba reduzindo a análise da Previdência a uma questão meramente financeira, o que não é. Ela também envolve a vida de milhões e milhões de brasileiros, todos nós.

Isso pode acabar criando um problema para o próprio governo. Se ele coloca o sarrafo em R$ 1 trilhão e o Congresso aprova uma reforma de R$ 700 bilhões ou R$ 600 bilhões, aquilo vai ser considerado derrota para o governo. Então, acho muito melhor se concentrar nos aspectos qualitativos: tornar a Previdência mais justa e mais sustentável.

Se [o Congresso] aprovar uma reforma que faz a transição para a idade mínima, ainda que seja gradual, se conseguir reformar o abono salarial e conseguir alinhar a Previdência do setor publico com a do setor privado, essa é uma reforma que simplesmente não se conseguiu fazer nos últimos 25 anos. Já seria uma grande reforma.

Mesmo que ela dê uma economia, digamos, de metade do que o governo espera, ainda assim, é uma boa reforma. Na política, muitas vezes o ótimo é inimigo do bom. Se o governo fica tentando produzir o número mágico de R$ 1 trilhão, pode até inviabilizar uma reforma mais gradual que resolva os problemas com um pouco mais de tempo.

O PIB (Produto Interno Bruto) encolheu no primeiro trimestre. Na sua avaliação, como ficará o PIB neste ano e no próximo? Quais são as perspectivas da economia?

Com esse número do primeiro trimestre, pelo que os especialistas têm colocado em séries temporais, é muito difícil termos um crescimento muito acima de 1% esse ano. Tudo indica que esse ano vai repetir, na melhor das hipóteses, o desempenho de 2017 e 2018, que foi um crescimento bem lento. Sendo que há o risco eventual até, não pode ser desprezado hoje, de a economia entrar em recessão. Pode ter uma nova queda.

É um resultado ruim, que mostra que a recuperação parou, a economia brasileira parou. Isso requer que o governo tome algumas medidas. Além de reformas de longo prazo, é necessário tomar algumas medidas de curto prazo para garantir a recuperação da economia.

PIB cai 0,2% no 1º trimestre de 2019

Band Notí­cias

O ministro Paulo Guedes diz que medidas de incentivo à economia só devem ser adotadas depois da aprovação da reforma da Previdência. É preciso tomar medidas já ou é correto esperar a aprovação da reforma?

As duas coisas podem acontecer conjuntamente. Hoje o governo, do lado fiscal, não pode adotar medidas de estímulo muito fortes porque ele está limitado pela meta de resultado primário [receitas menos despesas do governo] fixado pelo governo [Michel] Temer [MDB] e pelo teto de gastos também fixado pelo governo Temer. Então, a primeira coisa a ser feita é revisar esses limites porque eles estão se revelando claramente excessivos, altamente restritivos nesse momento.

Não tem nenhuma lei universal que diz que você tem que fazer primeiro a reforma da Previdência e depois revisar os limites. O governo poderia encaminhar as duas coisas ao mesmo tempo.

Infelizmente, não é essa a visão de governo. Então, tudo indica que vamos correr o grande risco de entrar em recessão nesse ano.

Que medidas o sr. sugere para fortalecer a economia?

Do lado fiscal, revisar as metas fiscais para descontigenciar recursos e aumentar o investimento público. Do lado do crédito, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) pode e deveria estar fazendo mais, mesmo sem subsídio. Ele poderia financiar mais mesmo a taxas de mercado, principalmente para pequenas e microempresas. E isso poderia auxiliar na recuperação da economia.

O que é preciso é recuperar o investimento público de forma duradoura. O governo vai ter que revisar o teto de gastos e as metas de [superávit] primário. Se fizer isso, ele pode adotar um pequeno estímulo, principalmente via investimento público, completando as obras que estão paradas. Não precisa fazer obra nova, basta completar as obras que estão paradas. E isto pode dar um estímulo à atividade [econômica], principalmente via investimento e construção civil, que gera bastante emprego.

Para isso, o governo tem que ser menos ideológico. Ele tem que estar disposto a adotar as reformas de longo prazo, mas também medidas de estímulo de curto prazo.

O secretário do Tesouro Nacional diz que o governo precisa de um crédito suplementar (R$ 248 bilhões em até 15 dias) para manter em dia os pagamentos de programas como o Plano Safra. A situação das contas públicas pode ter quais consequências para o governo e o país?

Esse é o problema da regra de ouro. Hoje você tem uma insuficiência de recursos que o governo tinha estimado inicialmente em R$ 248 bilhões. Hoje está, se não me engano, em R$ 147 bilhões. É importante que o Congresso aprove esse crédito para que não ocorra paralisação de alguns programas essenciais como o Bolsa Família.

Então, tem um problema mais imediato que é aprovar esse crédito para permitir que o governo possa emitir dívida para financiar esses programas no curto prazo. Nisso, apoio que o Congresso aprove a proposta logo para não dar problema. Porque, realmente, como o secretário colocou, pode ter problema dentro de um mês.

Mas também seria necessário encaminhar essa solução de modo duradouro. É preciso rever a regra de ouro, adotando uma regra mais adequada às nossas circunstâncias para que o problema de 2019 não se repita recorrentemente.

O desemprego chegou a 12,5% (13,2 milhões de pessoas) no trimestre encerrado em abril. O sr. avalia que esta situação, com desemprego acima de dois dígitos, permanecerá por quanto tempo ainda?

Com o crescimento lento da economia, infelizmente isso tende a permanecer por bastante tempo, ao longo de 2019 e muito provavelmente durante a maior parte de 2020, se não houver uma mudança de postura de política econômica.

Falta uma política industrial ao Brasil?

A política industrial é necessária, mas ela muda de nome ao longo do tempo. Hoje, ela não aparece com o nome de política industrial para beneficiar o setor A ou B. Ela aparece como política de inovação para beneficiar novos produtos, novas tecnologias, novos processos.

E também como política ambiental para incentivar novas fontes de energia, novos padrões de produção que sejam menos geradores de poluição e aquecimento global. E nesse processo você cria novos mercados, cria novos produtos, justifica novos investimentos.

Todos os países no mundo fazem política industrial, não necessariamente com esse nome, mas todos fazem. Aparece muito mais como política tecnológica e ambiental. O governo brasileiro, por vários motivos, parece ter aberto mão dessa iniciativa. Espero que isso seja revisado, mas confesso que não tenho muito otimismo nesse aspecto com esse governo.

Nelson Barbosa, ex-ministro de Dilma Rousseff - Pryscilla K. Dantas/UOL - Pryscilla K. Dantas/UOL
Segundo o ex-ministro, o pragmatismo deve pesar mais que a ideologia na condução de economia
Imagem: Pryscilla K. Dantas/UOL

Três anos depois do fim do governo Dilma, como o sr. avalia o período em que foi ministro do Planejamento e na Fazenda? Há algo que o governo deveria ter feito na época e não fez?

A posição que tenho é a mesma que tinha naquela época. O governo Dilma [no segundo mandato] começou com um ajuste macroeconômico porque no final de 2014 a inflação estava alta; o desemprego, baixo; e as contas públicas, com déficit. Só que esse ajuste macroeconômico inicial em 2015 [quando Joaquim Levy, atual presidente do BNDES, era ministro da Fazenda] acabou se revelando muito forte, principalmente devido a fatores adicionais que ocorreram naquele momento.

Teve o choque econômico da [operação] Lava Jato, que derrubou o investimento, independentemente dos benefícios que isso dará para o Brasil no longo prazo, que acho que dará. Mas economicamente a operação Lava Jato teve um efeito negativo sobre o PIB naquele momento. Teve uma mudança na situação internacional, com queda de preço de commodities também em 2015 e teve uma deterioração política com as chamadas pautas bomba no Congresso.

Então, a combinação de política macroeconômica restritiva, com pautas bomba, com efeitos econômicos da Lava Jato e com mudanças do cenário internacional, acabou aumentando o efeito das ações do governo, aprofundando e gerando uma recessão.

Por isso o governo revisou a sua estratégia e propôs naquele momento que se trabalhasse com déficit primário e reformas de longo prazo, o que, não surpreendentemente, tem sido a estratégia desde então. Mas, por motivos políticos, o Congresso não quis aprovar essa mudança de estratégia enquanto a presidente era Dilma, o que atrasou a recuperação da economia e aprofundou a recessão.

O que o sr. responde a quem atribui aos governos do PT a responsabilidade pela crise prolongada?

A crise que tivemos uma parte decorre de erros de política econômica que começaram a ser corrigidos durante o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff e não foram corrigidos totalmente porque o mandato foi interrompido. Mas outra parte da crise decorre de mudanças internacionais e da deterioração política que o Brasil viveu e vive até hoje. Você tem uma perda de governabilidade no Brasil que afeta qualquer governo, seja de direita ou de esquerda.

Você tem no Brasil hoje um sistema que todo mundo tem poder de veto e ninguém tem poder de decisão. E precisa ter pelo menos um consenso nacional em torno de uma estratégia. Essa falta de governabilidade que começa com o golpe de 2016 prevalece até hoje e já começa a atrapalhar o próprio governo Bolsonaro.

Em entrevista recente à "GloboNews", Paulo Guedes disse que a direita é insensível aos problemas sociais e a esquerda tem um "coração enorme", mas lhe falta "potência intelectual" para lidar com a economia. Na sua opinião, a esquerda tem dificuldades para lidar com a economia?

Não tem. Basta ver o sucesso dos vários governos do PT no Nordeste. Essa caracterização que o ministro fez é uma simplificação muito grande. Não existe só uma esquerda, tem várias. Assim como não existe só uma direita, também tem várias. No final das contas, o que prevalece no mundo real é uma postura pragmática para enfrentar os problemas, e não ideológica.

Como o sr. avalia a atuação do ministro Paulo Guedes?

Prefiro não avaliar. Ele está tentando fazer o que ele acha que é necessário. Espero que ele revise algumas posições que acho que estão equivocadas, mas é preciso dar tempo. Ele só tem cinco meses.