Logo Pagbenk Seu dinheiro rende mais
Topo

Cota racial não é incompatível com economia livre, diz advogado liberal

Advogado Irapuã Santana - Arquivo pessoal
Advogado Irapuã Santana Imagem: Arquivo pessoal

Ricardo Marchesan

Do UOL, em São Paulo

25/11/2020 04h00

Cotas para minorias em universidades e outras ações afirmativas para diminuir desigualdades sociais e raciais não são incompatíveis com o ideário econômico liberal, que prega uma menor intervenção do Estado na sociedade. Essa é a visão do advogado Irapuã Santana, 33, consultor jurídico da ONG Educafro e do movimento Livres.

A Educafro é uma organização que trabalha pela diversidade e inclusão por meio de ações afirmativas, enquanto o Livres é um grupo que defende ideias liberais na economia e atualmente tem membros em cargos políticos em vários níveis, em partidos como Novo, Cidadania, PSDB, PP e PSB.

Irapuã Santana se descreve como um social liberal de centro-esquerda e defende políticas antirracistas. Ele critica, por exemplo, a forma como concursos públicos são organizados, que considera elitistas, e diz que há racismo institucional no serviço público. Por isso, acredita que a reforma administrativa pretendida pelo Ministério da Economia deve tentar sanar esses problemas.

Uma reforma administrativa que não pense na questão racial é uma reforma que não pensa em 56% da população. O que é completamente impensável. Não podemos progredir hoje em dia sem pensar na questão racial
Irapuã Santana, consultor jurídico da Educafro e do Livres

Santana também é a favor de medidas para aumentar a participação de negros em cargos de liderança na iniciativa privada, mas acredita que essas políticas devem partir das próprias empresas, incentivadas pelo poder público, e não por meio de uma intervenção estatal direta.

Confira os principais trechos da entrevista ao UOL.

O senhor é consultor do Livres, instituto que defende pautas liberais por vezes identificadas com a direita, e também da Educafro, ONG com um alinhamento mais à esquerda. Como é caminhar entre esses dois espectros políticos em um momento tão polarizado do debate público?

Olha, é bem interessante (rindo). Primeiro eu entrei na Educafro e, quando fui contratado pelo Livres, eles já sabiam que eu tinha a pauta na Educafro. São dois movimentos suprapartidários, que querem a diversidade em todos os lugares. Dentro do Livres há gente mais à esquerda, mais ao centro e mais à direita. Tem pessoas que são anarcocapitalistas, outras são sociais-liberais, como eu.

Inclusive, sou coordenador da setorial antirracista do Livres, que é o setorial Luiz Gama, que tem a ideia de ser mais moderada, de não ter uma explicação marxista sobre o racismo.

Na Educafro, embora o frei David [Santos, diretor executivo da ONG,] seja um homem de esquerda, eu converso com ele sobre tudo, por exemplo, a reforma da Previdência, sobre impeachment da Dilma. E a gente nunca chegou a brigar por causa disso. Ele é um cara que escuta bastante todo mundo e que fomenta muito o debate.

No final das contas, trabalhando com esses dois lugares eu me sinto muito confortável, porque eles me deixam muito à vontade para ser quem eu sou.

Ações afirmativas são incompatíveis com o liberalismo econômico?
Eu entendo que não. Quando a gente trata do liberalismo, vemos que as pessoas precisam partir do mesmo ponto para ter a liberdade o suficiente de escolher o que elas querem ser ou desenvolver completamente as suas potencialidades.

Quando falamos da necessidade de ações afirmativas, é justamente para reequilibrar essas potencialidades e, a partir dali, elas poderem concorrer em pé de igualdade com as outras pessoas.

Eu entendo que é um complemento, tí­pico do que o liberalismo prega de fato: a concorrência e ter a liberdade de ser quem quiser, como quiser e quando quiser.

Pessoas que se dizem liberais e são contra ações como cotas, por exemplo, têm um entendimento equivocado do que seria o liberalismo econômico?
Temos alguns vieses do liberalismo, assim como qualquer corrente polí­tica. Eu me adequo mais ao social liberalismo, tem o liberalismo mais clássico, enfim, há outras correntes.

Eu não posso dizer que o liberalismo correto é o liberalismo social. Esse serve para mim. Para outras pessoas, pode servir outra [corrente].

Eu preciso de uma demonstração de que determinada polí­tica pública é ou não mais eficaz. E tem sido demonstrado através dos anos que a polí­tica de cotas é eficaz. Elas têm um custo muito baixo, porque é somente reserva de vagas, e tem uma resposta muito boa de quem as utiliza, devolvendo isso para a sociedade.

Então, mais do que falar se aceita cotas ou não, se é mais liberal ou menos liberal, é pedir que falem: 'Eu não concordo com as cotas raciais, mas tenho uma solução melhor.' Aí­ a gente pode discutir isso.

Por que, em sua visão, as cotas precisam ter critérios raciais, também, e não apenas socioeconômicos?
Precisamos entender o que a gente quer modificar. Quando falamos de cota racial, queremos acabar com o racismo estrutural. Colocar as pessoas no local onde elas não estavam, mas que também pertence a elas.

Há uma troca muito nefasta. Quem estuda em colégio público vai para a universidade privada, e vice-versa. O pobre acaba pagando a universidade para si e para quem está utilizando uma universidade pública.

Mas, mais do que isso, quando falamos sobre preparação, mercado de trabalho e distribuição socioeconômica, a questão racial é outro fator que prepondera sobre a pobreza.

Vão dizer: 'Mas também tem branco pobre. Esse cara não pode ter cota?'. Aliás, já tem, porque quem é de escola pública tem cota.

Mas, além disso, o negro pobre luta duas vezes. Quando ele deixa de ser pobre, ele continua sendo negro, continua sofrendo racismo. O branco, não.

No mercado, as pessoas brancas têm muito mais oportunidades de trabalho do que as pessoas negras.

Quando falamos em cota racial, é justamente para aumentar a possibilidade de pessoas negras conseguirem ascender socialmente e diminuir a ideia do racismo estrutural, que coloca a pessoa negra de terno como segurança, como motorista, como um pastor evangélico, e não como um executivo ou um advogado, por exemplo.

O senhor também defende cotas na iniciativa privada, entre cargos de liderança em empresas?
Acho que essas iniciativas devem ser promovidas, incentivadas, sim. Quando aconteceu com o Magazine Luiza, eu me manifestei à época falando que, além de constitucional, ela é uma medida moral e que deve ser incentivada.

Em setembro, o Magazine Luiza anunciou um programa de trainee exclusivo para negros. A iniciativa foi elogiada por entidades de luta por igualdade, mas também sofreu ataques e a Defensoria Pública da União entrou com uma ação civil pública contra o que chamou de "marketing de lacração".

A ideia do Magazine Luiza foi muito interessante, porque tinha mais de 50% de funcionários negros dentro da sua companhia, mas nos cargos de chefia eram só 16%. Querer corrigir esse tipo de coisa, querer dar chance para as pessoas negras é super louvável.

Essa pessoa negra em altos cargos dentro da iniciativa privada vai servir também de referência para quem está de fora. Dá mais esperança para quem está chegando, também.

Uma política de cotas ou de oportunidades mais diretas para que negros cheguem a cargos de liderança deve ser uma iniciativa individual de cada empresa, ou é possível uma legislação ou política de estado para que isso aconteça?
Temos que entender também até que ponto vai o papel do Estado, até que ponto de intervenção. Eu acho é possível fomentar isso, tentar incentivar esse tipo de coisa. Por exemplo, criar um selo estatal de companhia antirracista, alguma coisa assim.

Mas não uma lei especí­fica para a reserva de vagas dentro das companhias, obrigando a colocar um número x de pessoas negras em seus cargos.

Acho que a gente pode trazer polí­ticas públicas de fomento, de incentivos, que sejam mais brandas e não que obriguem, como acontece dentro das universidades ou do serviço público.

Que outras medidas podem ser tomadas para aumentar a participação de minorias em cargos de liderança?
Acho que o amplo debate que a gente vem fazendo tem tido bons resultados. Recentemente o Nubank demonstrou fazer um investimento de algum capital para poder trazer maior diversidade dentro do banco. Tem o Magazine Luiza.

Saber que o negro compõe a sociedade, que consome, e que, onde ele não se vê, não consome, é uma grande mola propulsora desse tipo de atitude e de movimentação.

Recentemente o senhor escreveu artigo com o economista Pedro Nery defendendo como uma reforma administrativa pode ser uma política de combate ao racismo. O racismo afeta o funcionalismo público? De que jeito?
Isso surgiu de um bate papo nosso, em que ele [Pedro Nery] demonstrou que a União paga aproximadamente R$ 300 bilhões para o funcionalismo público, que tem, mais ou menos 66%, das pessoas brancas. Do outro lado, há R$ 30 bilhões para o Bolsa Famí­lia, com 75% de pessoas negras. Vemos aí a discrepância de valor de investimento que o Estado dá para cada etnia do paí­s.

Entendo que temos um racismo institucional, sim, no serviço público, justamente por causa dessa barreira.

Historicamente, a gente precisava conhecer o chefe do Executivo para ingressar no serviço público. A entrada se tornou um pouco facilitada com o concurso, mas a gente precisa se perguntar quem é que consegue entrar no concurso público. Quem tem tempo para se dedicar para fazer um concurso público?

A gente vê que quem tem a melhor estrutura para poder fazer um estudo direcionado para o concurso geralmente são pessoas brancas, com pais que já estavam no serviço público também

Conseguimos enxergar esse racismo institucional nas carreiras do concurso público. E mais especificamente nos concursos de maior prestí­gio, como para juiz, do Ministério Público, onde hoje em dia são mais ou menos 90% pessoas brancas.

Precisamos repensar a forma para que essas carreiras sejam preenchidas por pessoas negras.

Nessa reforma administrativa que o governo pretende apresentar já poderia entrar alguma medida para diminuir esse racismo estrutural dentro do serviço público?
Com certeza.

Uma reforma administrativa que não pense na questão racial é uma reforma que não pensa em 56% da população. O que é completamente impensável. Não podemos progredir hoje em dia sem pensar na questão racial

Que medidas propõe?

O que a gente tem feito na Educafro, especificamente dentro dos concursos, é tentar fazer com que aquelas vagas sejam reservadas aos mais bem colocados entre os negros, os cotistas, independentemente da nota de corte. Ou modificar a nota de corte na primeira fase dos concursos. Temos conversado com várias organizações, bancas de de concurso, para tentar adaptar isso e preencher essas vagas.

O senhor menciona também como a natureza meritocrática do sistema de concursos públicos também é elitista, e de que há um estigma contra funcionários públicos não selecionados por concursos. O senhor defende uma flexibilização no sistema de contratação por concursos, inclusive para que o sistema seja mais antirracista?
Com certeza. Inclusive, acho necessárias cotas nesse tipo de contratação. Falar: 'Olha, cargo comissionado também precisa ter cota. Essa flexibilização de contratação especí­fica precisa ter cota'. Acho que a gente tem que ampliar esse debate, sim.

É possível dizer que o sistema de concursos, na sua natureza, é racista?
Diria institucionalmente injusto. A partir daí­, ele acaba não tendo um viés que se preocupa com a questão racial. Aí sim, por esse lado, podemos dizer que não olhar para a questão racial é também, nesse sentido, ser racista, sim.