Governo e agronegócio querem frutas em nova frente de exportação brasileira
Cada vez mais caras e menos presentes na mesa dos brasileiros, as frutas se tornaram produtos estratégicos para o agronegócio, acumulando recordes de exportação durante os últimos dois anos.
Alheio à fome que assola ao menos 19 milhões de pessoas e à insegurança alimentar que atinge mais da metade da população, o setor conta com o apoio do governo para fazer das frutas a nova frente de exportações.
Os picos de vendas ao exterior coincidem também com a disparada recorde da inflação, muito acima do índice geral, já em um patamar elevado. Em dois anos, as frutas ficaram 30% mais caras no Brasil, segundo o IPCA. No mesmo período, a inflação geral foi de 15%.
Em 2020, as remessas de frutas brasileiras para o exterior já haviam ultrapassado um milhão de toneladas, um resultado até então inédito para o setor.
No ano passado, o setor comemorou US$ 1,21 bilhão de faturamento, cerca de 20% a mais que no ano anterior. O volume exportado também bateu novo recorde: 1,24 milhão de toneladas, uma alta de 18%.
Esses resultados refletem a abertura de novos mercados, com a assinatura de acordos bilaterais de comércio, uma agenda política, econômica e diplomática que vem sendo implementada com relativo sucesso pelo governo de Jair Bolsonaro (PL).
Setor acompanhou Bolsonaro na Rússia
A presença da entidade que representa os grandes exportadores de frutas —a Abrafrutas— na recente viagem oficial do governo brasileiro à Rússia é um indicador do peso que o setor vem ganhando na agenda do agro.
Ofuscada pela falta de timing e pelo criticado desempenho diplomático de Bolsonaro, a visita também incluiu representantes das duas principais entidades de produtores de carne e de uma indústria química.
As trocas comerciais entre o Brasil e a Rússia se baseiam na cadeia do agronegócio. O Brasil importa fertilizantes russos, enquanto exporta grãos, carnes, açúcar e, mais recentemente e em menor escala, frutas. Em 2021, foram enviadas 33,3 mil toneladas para o mercado russo —maçãs principalmente, mas também manga, melancia, melão e limão.
Isso dá uma ideia do tamanho da encruzilhada diplomática em que o governo brasileiro se meteu, além de indicar um horizonte de pressão inflacionária ainda maior sobre os alimentos nos próximos meses.
Embora seja o terceiro maior produtor de frutas do mundo, atrás apenas da China e da Índia, o Brasil não é considerado um grande exportador: ocupa a 23ª posição no ranking mundial. A fruticultura representou 2% das exportações brasileiras no agronegócio em 2021 .
"O Brasil é um fornecedor estratégico de frutas em mercados importantes como Europa e América do Norte, pois ocupa a entressafra de outras regiões produtoras que não conseguem atender a demanda ao longo do ano", explica Gustavo Ferroni, coordenador da área de Justiça Rural e Desenvolvimento da Oxfam Brasil, organização que tem como foco o combate a desigualdades sociais.
Próximos destinos: China, Rússia e mercado asiático
Seguindo os passos da soja e do milho, o governo quer abrir novos mercados, em especial China, Rússia e outros países asiáticos.
O melão foi a primeira fruta brasileira autorizada a entrar na China, em setembro de 2020. "A China, só pra consumo próprio, planta mais de 400 mil hectares. É 40 vezes nossa produção de exportação. É bem possível que a gente consiga explorar esse mercado, não só da China, mas de outros países da Ásia, como as Filipinas e o Vietnã", avaliou Luiz Roberto Barcelos, sócio da Agrícola Famosa, em entrevista ao Canal Rural.
Segundo projeta o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), se o Brasil conquistar 1% do mercado chinês, o volume da produção deverá dobrar, já que a safra brasileira coincide com a entressafra do país asiático, maior consumidor de melões do mundo.
"A China tem importado muitas frutas nos últimos anos. Isso mostra um grande potencial de crescimento nos próximos anos. O setor fica alvoroçado para entrar neste mercado", diz o economista Valter Palmieri Jr., professor da Strong Business School. "O governo tem conseguido criar parcerias. Com as frutas, não é tão fácil de entrar, comparando com outras commodities. Não é só uma questão econômica, mas diplomática também", acrescenta.
Houve dificuldades em abrir novas linhas marítimas com destino à China em meio à pandemia, o que atrapalhou os planos dos exportadores de melão no ano passado.
Produção concentrada em grandes empresas
Os estados do Nordeste são os principais produtores de melão, com mais de 90% da produção. Petrolina (PE) e Mossoró (RN) tiveram aumento expressivo de produção e exportação nos últimos cinco anos. A produção de manga, fruta mais exportada em 2021, também se concentra nesses dois estados e na Bahia, graças à atuação de grandes grupos voltados para a exportação.
Esses produtores se beneficiaram com a implementação de sistemas irrigados no vale do Rio São Francisco e nos estados da Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará.
"O discurso era de que o mercado ficaria para produtores locais, mas isso não ocorreu. Hoje temos a produção concentrada em multinacionais e grandes nomes do agronegócio", diz Gustavo Ferroni, da Oxfam Brasil, que coordenou o estudo Frutas Doces, Vidas Amargas, lançado pela organização em 2019.
Embora reconheça avanços, como o alto índice de formalização dos trabalhadores rurais e a geração de emprego, o estudo também aponta para a superexploração da jornada, a precariedade do trabalho por safra, exposição altíssima a agrotóxicos e salários baixos, considerando a riqueza gerada pelo setor.
Inflação das frutas é o dobro da geral
As frutas seguem um caminho semelhante ao de outros alimentos no Brasil: os picos de exportação coincidem com aceleração da inflação e o desmonte de políticas públicas que poderiam amortecer os efeitos da crise sobre a população mais vulnerável.
Entre 2020 e 2021, o preço das frutas no Brasil acumulou alta de 29,3%, muito acima da inflação geral do período, que foi de 15%. A disparada nos preços incluiu frutas que faziam parte do dia a dia do brasileiro, como mamão (+80,7%), banana prata (+42%) e laranja pera (+30,2%) .
Apenas um a cada três brasileiros come frutas regularmente e só 23% consomem a quantidade recomendada pela OMS (Organização Mundial da Saúde). Os dados são da última pesquisa Vigitel, de 2019, e não refletem, portanto, a piora dos indicadores de segurança alimentar durante a pandemia.
Famílias ricas consomem quatro vezes mais frutas do que as mais pobres, segundo os dados da última Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), além de terem acesso a uma diversidade maior de frutas. Essa disparidade se repete inclusive nas frutas que, em tese, deveriam ser mais acessíveis, como é o caso do mamão, melão, manga e abacate.
Brasil tipo exportação
Instrumento de venda das frutas brasileiras no exterior, a campanha Frutas do Brasil apresenta um Brasil "tipo exportação". Descrito ao mesmo tempo como pomar do mundo e gigante do agronegócio, o Brasil é vendido como um país habitado por "gente saudável, ativa e bonita, como os surfistas brasileiros".
"Brasil, sustentável, diverso, inovador, produtivo e inclusivo", descreve o locutor, em inglês, na mais recente campanha da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil). O agro aparece como um setor que promove a sustentabilidade ambiental e o desenvolvimento social, o que conflita com a realidade da porteira para dentro.
"O mundo começa a se alimentar com alimentos saudáveis. Foi assim que começamos esse ano de 2021: as pessoas do mundo inteiro comendo mais frutas, e o Brasil exportando mais", comemorou Guilherme Coelho, presidente da Abrafrutas, ao fazer um balanço dos resultados do setor no ano passado.
O Joio e o Trigo procurou a entidade, mas não houve interesse em responder às perguntas.
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