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Dragão virou símbolo da inflação em época de preço subindo 1.700% ao ano

A figura mitológica do dragão entrou para o vocabulário econômico para representar a inflação - Julos/Getty Images
A figura mitológica do dragão entrou para o vocabulário econômico para representar a inflação Imagem: Julos/Getty Images

Marcela Lemos

Colaboração para o UOL, no Rio

09/05/2022 04h00

A figura mitológica do dragão, muito comum em histórias fantásticas como Game of Thrones e games, entrou para o sisudo vocabulário econômico décadas atrás. Ele sintetizou um problema grave enfrentado pelo país. De aparência assustadora e ataque fulminante, o dragão foi o escolhido para representar a inflação. A opção não foi à toa. O dragão da inflação "queima o poder de compra", define o economista e professor do Ibmec RJ, Gilberto Braga.

Em 1980, a inflação acumulada do ano foi de 110,24%. Em uma década, ao fim de 1989, acumulou 39.043.765%. A capa do jornal "Folha de S.Paulo" de 29 de dezembro de 1989 trazia os números assustadores: A inflação de dezembro tinha sido de 53,55%. O índice acumulado no ano ficou em 1.764,87%, o maior da história. A inflação nos anos 80 chegou a 39.043.765%. O salário mínimo passa a NCz$ 1.283,95 (cruzados novos), com aumento real (acima da inflação) de 6,09%. Os aluguéis teriam reajuste de 1.383,75%.

O Brasil vivia o auge do período inflacionário. Naquela época, a figura do dragão associada à inflação se popularizou. Em 1986, uma ilustração chegou a estampar grande parte da capa do jornal "O Globo". Em junho de 1988, quando o governo previa inflação de 20% para o mês, o dragão virou "garoto-propaganda" de seguros de um banco, ocupando parte das páginas do jornal "Folha de S.Paulo". O aperto financeiro havia sido incorporado ao dia a dia do brasileiro.

Dragão da inflação - Reprodução/Acervo Folha - Reprodução/Acervo Folha
Dragão da inflação: Em 1988, a figura mitológica virou 'garoto-propaganda' de seguros de um banco
Imagem: Reprodução/Acervo Folha

Mocinhos e vilões

Em termos linguísticos, o uso da figura mitológica se referia a "mocinhos e vilões", como argumentam as pesquisadoras Maria Cristina Liro Gurgel e Solange Coelho Vereza, no artigo "Dragão da Inflação contra o Santo Guerreiro: Um estudo da Metáfora Conceitual", publicado em 1996 na revista de linguística "Intercâmbio", da PUC-SP.

"Neste embate, surgem vilões que alimentam o monstro da inflação — oligopólios, preços, supermercados — e os heróis/cavaleiros que o combatem com estratégias de luta — planos econômicos, moeda forte", destacam as autoras.

Para o economista e professor da PUC-Rio, Lucas Roberto Cunha, a interpretação é pertinente. "[Era a ideia do] Dragão que cospe fogo, fazendo fracassar os planos econômicos do período", destaca o professor.

Nos anos 1980, os meios de comunicação já faziam referência ao "dragão da inflação" com charges e propagandas. Mas a figura se tornou mais assídua no dia a dia do brasileiro no final da década, quando a inflação chegou a bater 800% no ano, conforme registro de outra edição de "O Globo".

Preços dobrando a cada mês

Gilberto Braga afirma que o período foi marcado pelo descontrole financeiro, endividamento externo elevado e crescimento baixo do país, o que resultava no cenário de hiperinflação.

Na tentativa de superar a situação, houve sete planos econômicos e cinco reformas monetárias entre 1986 e 1994, quando foi criado o Plano Real, que finalmente conseguiu controlar a inflação.

"Os produtos chegavam a dobrar de preço no intervalo de 30 dias. Era uma inflação de 100% ao mês. Quando o trabalhador recebia o salário, ele não tinha noção do poder aquisitivo, e isso fazia com que as pessoas partissem para os mercados para comprar alimentos. Esse cenário culminou em 1986, no Plano Cruzado, no governo de José Sarney. O plano tinha como ferramenta o congelamento de preços [para controlar a inflação], mas não deu certo. Os produtos desapareceram das prateleiras. O plano se perdeu, e vieram outros -boa parte deles tinha como característica a troca de moedas", diz o professor.

Ele afirma ainda que na época o país enfrentava a chamada inflação inercial, ou seja, o aumento contínuo de preços para recomposição da inflação passada somada às expectativas do comportamento dos preços no futuro. Na prática, um comerciante reajustava o preço de um item para recuperar perdas com a inflação e ainda acrescentava valores que ele imaginava que poderia perder até o próximo reajuste.

De acordo com o Banco Central, a crise econômica do período levou economistas a chamarem os anos de 1980 de "década perdida".

A inflação finalizou 1994 com 916%. Depois do Plano Real, atingiu 22% em 1995. Desde então, "mesmo com as várias crises internacionais e internas que prejudicaram a estabilização econômica, o IPCA acumulado em 12 meses passou de 9% em poucas ocasiões", afirma Braga.

Abertura da economia ajudou contra inflação

Segundo o professor de Economia da PUC-SP e presidente do Conselho Federal de Economia, Antônio Corrêa, a estabilização econômica com o Plano Real ocorreu, sobretudo, após a intensificação da abertura da economia brasileira.

"Com erros e acertos, nós temos hoje uma economia mais aberta, houve a ampliação da concorrência no mercado internacional e passamos a ver produtos nacionais e importados, o que amplia a oferta. A maior oferta ajuda a termos mais concorrência, e isso gera menos inflação, potencialmente falando", explicou.

O professor diz que a estabilização da economia foi possível porque o país passou a contar com níveis mais elevados de reserva cambial "para resgatar o papel-moeda frente à corrosão financeira" - um dos fatores que resultaram na preservação da moeda ao longo de quase 30 anos.

Em 2021, a inflação acumulada no país foi de um pouco mais de 10% - resultado "basicamente do preço das commodities no mercado internacional, desvalorização do real perante o dólar e ausência de políticas econômicas no Brasil que trabalhem a formação de preços", avalia.