Dólar blue, Coldplay e Qatar: Por que Argentina tem tantos tipos de câmbio?
Marcela Schiavon
Colaboração para o UOL, em Santo André (SP)
09/09/2023 04h00
A situação cambial da Argentina não só é problemática, mas também complexa: existem vários tipos de dólar, um para cada uso ou ocasião. O UOL conversou com economistas para entender os diferentes câmbios usados no país e como a forte desvalorização do peso tem agravado a crise econômica do país.
Quais são os tipos de dólar na Argentina?
Dólar oficial: a taxa definida pelo governo é a referência. A taxa hoje é de 350 pesos por dólar, fixada desde o final de julho, após o último acordo com o FMI.
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Dólar ahorro: é o dólar oficial, mas com limite de compra por mês.
Dólar blue: é o câmbio paralelo, que opera em um mercado ilegal. É vendido por um câmbio paralelo e mais baixo entre os cidadãos, e dita os preços de consumo do país. A diferença para a taxa oficial indica a intensidade das buscas por alternativas mais acessíveis às restrições e impostos das taxas oficiais. O dólar blue oscila diariamente e está em torno de 730 pesos.
Dólar turista: é a referência de compra para quem vem de fora da Argentina.
Dólar Netflix: dita a cobrança de consumo das plataformas digitais
Dólar MEP: usado na compra de título público. O dólar MEP (Meio Electronico Pagamentos) tem uma taxa para operações no sistema financeiro. Além dos títulos públicos, tem um câmbio que algumas bandeiras de cartão oferecem para turistas que visitam a Argentina, e é melhor do que o câmbio oficial.
Dólar cripto: específico para a compra e venda de criptomoedas.
Dólar CCL: usado por empresas trocarem peso por dólar.
Dólar Qatar: para os turistas argentinos que vão para fora.
Dólar Coldplay: para artistas.
Dólar soja e agro: para exportadores.
O que está acontecendo com a economia argentina?
Peso desvalorizou fortemente. Em meio à incerteza gerada pelos resultados das eleições primárias, em que o economista de direita radical Javier Milei foi o mais votado, o Banco Central da Argentina (BCRA) anunciou no final de agosto uma desvalorização de 20% do peso e o aumento em 21 pontos percentuais da taxa de juros, para 118% ao ano, decisões que desencadearam uma aceleração na subida dos preços.
A situação cambia tem relação direta com a forte inflação no país. Hoje, o país enfrenta uma inflação descontrolada, que passa de 110% nos últimos 12 meses, e uma crise de custo de vida que deixou quatro em cada 10 pessoas na pobreza. Mas já foi muito pior, passando de 2.000% há algumas décadas.
Como dólar é muito usado no país, tem forte impacto no câmbio e na inflação. O país depende muito de importações para sua indústria e, quando o dólar se valoriza, os preços dos produtos aumentam rapidamente. Além disso, as exportações, principalmente de commodities agrícolas, fornecem dólares ao país. Quando as exportações vão bem, há entrada de dólares no país; quando vão mal, o mercado cambial enfrenta pressões.
O país abriga várias taxas de câmbio, oficiais e ilegais. Em geral, esses câmbios diferentes têm como objetivo encarecer a saída de dólares do país. Por exemplo, um dólar caro desencoraja gastos com turismo no exterior ou compras de produtos de luxo. Por outro lado, taxas de câmbio com peso mais valorizado podem ser usadas para incentivar importações de itens essenciais, como energia e insumos industriais.
As alternativas são uma forma de buscar opções mais baratas. A diferença para a taxa oficial de dólar indica a intensidade das buscas por alternativas mais acessíveis às restrições e impostos das taxas oficiais.
Governo atual enfrenta pressão do FMI para unificar as taxas de câmbio. Mas teme gerar pressão adicional sobre inflação em período eleitoral, especialmente em preços de suprimentos essenciais. A questão cambial também é um ponto crucial de discussão entre os candidatos à presidência argentina. As eleições estão marcadas para o dia 22 de outubro.
Do ponto de vista das finanças pessoais, fica muito mais desafiador ter um programa de investimento das reservas financeiras. Se o dólar paralelo está o dobro do dólar oficial, é sinal de desordem econômica, e as famílias sofrem muito mais devido à grande dificuldade de planejar seu futuro.
José Faria Júnior, diretor da consultoria Wagner Investimentos
Diante da desvalorização da moeda local, os cidadãos se viram sem poder de compra nas mãos e ainda pior, convivendo com a insegurança do valor real da moeda. Com isso, houve uma busca por segurança financeira no lastro do dólar.
Thiago Rodrigo, líder de ICMS na LacLaw Technology
Governo restringe compra de dólares
A procura do dólar oficial, também chamado de dólar poupança, fez o câmbio disparar ainda mais. O governo não conseguia manter uma reserva alta dólar pelo Banco Central argentino e restringiu a compra da moeda. Além do limite para compras, há também um tributo incidente sobre a aquisição.
Câmbio paralelo, a um valor inferior ao oficial, dita os preços de consumo do país. "Podemos perceber que, em razão da inflação do país ser tão grande, a população prefere ter em mão o dólar para não perder o poder de compra. Com a alta oferta de peso e a baixa demanda da população, a moeda continua a perder valor", diz Gustavo Cruz, estrategista-chefe da RB Investimentos, especialista em juros, câmbio e macroeconomia.
Argentina tentou dolarizar a economia e mais tarde entrou em moratória. Na década de 1990, o país adotou uma "quase" dolarização. A fixou uma taxa de câmbio de 1 peso argentino para 1 dólar norte-americano. Isso moldou a cultura econômica do país, que possui uma tradição de usar o dólar em transações corriqueiras. Mas essa paridade deu lugar a uma crise no início dos anos 2000. O governo era incapaz de sustentar o déficit externo. Ou seja, saía muito mais dólar do país do que entrava, e a dívida do país só aumentava. Em 2001, a Argentina decretou e a moratória da dívida externa, já em cenário de crise política intensa.
Dicas aos turistas
Se você pensa em viajar à Argentina, atenção. As casas de câmbio possuem restrições, tributações e, em geral, são mais caras. Uma dica é usar contas em dólar, que permitem saque em pesos no dólar blue para gastos do dia a dia.
As casas de câmbio que vendem dólar legalmente operam com o dólar oficial. Mas é muito comum encontrar outras taxas, em negociação informal. É preciso tomar cuidado com a compra de dólares, mesmo em casas de câmbio. Não é incomum o uso de notas falsas.
É óbvio que eles querem atrair turistas, querem atrair dólares de fora, mas ao mesmo tempo é importante ficar atento com as taxas de câmbio. Nunca compre pesos muito antecipadamente, já que nem sempre os valores em casas de câmbio são os mais favoráveis. Fique atento às diferenças de taxas em bandeiras de cartão de crédito e use opções de contas em dólar.
José Augusto Gaspar Ruas, doutor e economista, coordenador do curso de ciências econômicas da Facamp