O depoimento do ex-CEO das Americanas Miguel Gutierrez à CVM (Comissão de Valores Mobiliários) em 16 de março, ao qual o UOL teve acesso com exclusividade, ilustra a cultura corporativa de abuso contra fornecedores e obcecada por resultados e repartição de bônus a executivos da companhia, nem sempre de forma transparente.
A conta da atividade-fim ficava, então, com os fornecedores dos produtos vendidos nos serviços das Americanas. Primeiro, a varejista comprava comprometendo-se a pagar em 30 dias, depois mudava unilateralmente o prazo para 90 dias.
"O fornecedor, você, normalmente, compra para vender nos próximos 30 dias. Aí você vende e fala para ele 'olha, eu quero te pagar em 90 dias'. Aí você vai ter 60 dias [a mais] de prazo para pagar. Isso é uma fonte de geração de caixa", disse Gutierrez à CVM.
"O fornecedor é que diz quanto a gente pode vender", contou. Logo depois reconheceu que a prática "estava errada".
Tanto a atual direção da companhia quanto o atual conselho de administração, indicado pelos acionistas de referência, rechaçam a responsabilidade por práticas lesivas aos fornecedores (leia mais abaixo).
O relato do ex-CEO sobre a prática abusiva encontra corroboração com fornecedores prejudicados. Em junho passado, a revista Piauí revelou como a prática quebrou a Forte Minas, uma fornecedora de transporte e logística para as operações física e digital das Americanas, que prestou serviços para a varejista entre 2013 e 2021. Segundo a revista, em 2020, o fornecedor passou a cobrar o reajuste previsto em contrato.
A varejista não pagou o reajuste e passou a atrasar os pagamentos primeiro para 60 dias e, depois, para 90. Em 2021, depois de rejeitar uma oferta pela empresa porque as Americanas tinham prioridade na aquisição, o dono da Forte Minas foi surpreendido com o fim do contrato com a varejista abruptamente. A fornecedora quebrou, demitindo 300 funcionários, segundo a revista.
Como as Americanas entraram em recuperação judicial em janeiro, o prejuízo se estende a cerca de 15 mil fornecedores em todo o país. A varejista deve pelo menos R$ 40 bilhões a credores bancários, fornecedores, funcionários e ex-funcionários, além de outros R$ 7 bilhões em debêntures (títulos de dívida privada negociados no mercado financeiro).
O UOL revelou na segunda-feira que Gutierrez disse à CVM em março e à Polícia Federal em junho que todas as decisões que ele tomava à frente da empresa eram discutidas previamente com Carlos Alberto Sicupira, um dos acionistas de referência, ao lado de Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles. Os três também são donos da Ambev.
Na ocasião, as Americanas acusaram Gutierrez de mentir sobre receber ordens de qualquer acionista com o "objetivo eximir sua responsabilidade e sua relação direta com a fraude de resultados identificada". Lemann, Telles e Sicupira, que também negam ter tido conhecimento da fraude contábil previstamente, disseram que "confiam nas autoridades competentes na investigação e punição dos responsáveis pela fraude que atingiu as Americanas, seus acionistas, empregados e colaboradores."
Marina Blattner e Eduardo Chad, advogados do atual conselho, disseram ao UOL que é "fantasiosa" a versão de Gutierrez que o conselho ou algum de seus integrantes soubesse ou avalizasse a prática de atrasar de propósito o pagamento de fornecedores para gerar caixa. Segundo eles, a gestão dos contratos com fornecedores não era matéria do conselho, mas matéria estatutária da diretoria.
Procurada pelo UOL, a atual gestão das Americanas, que acusa Gutierrez e os ex-diretores publicamente de fraude, afirmou que "em relação aos contratos de fornecedores, por exemplo, todas as decisões eram tomadas unicamente pela diretoria".
A cor da camisa
Além da forte pressão por resultados, os executivos eram pressionados a comprar ações da própria companhia com o dinheiro do bônus - o que equivalia a 75% de sua remuneração.
O tamanho do bônus dependia da decisão do conselho de administração. Conselho que, até 2020, foi presidido por Beto Sicupira, cuja influência, pelos depoimentos aos quais o UOL teve acesso, continuou mesmo depois de sua saída.
O próprio Gutierrez contou à CVM como funcionava a relação de Sicupira com os demais conselheiros.
Ele disse aos investigadores ter conhecido o acionista quando foi nomeado para o conselho das Americanas, em 2001: "Eu não tinha [nem] três anos de mandato. Nossa primeira conversa com Beto foi muito engraçada. Nós fomos almoçar, ele fez uma avaliação e disse 'quero te dizer uma coisa: meta para mim é uma parcela discricionária. Você sabe o que é discricionária?'".
"Sei, claro", respondeu Gutierrez, conforme o próprio relato.
"Aí ele [Sicupira]: 'Mas eu quero te dar um exemplo: não gostei da tua camisa, vou tirar 50% do teu bônus. Eu tiro'."
"Tá bom. Vou torcer para que você goste da minha camisa", respondeu Gutierrez.
Já os advogados do atual conselho disseram ao UOL que o relato do bônus e cor da camisa são "aleivosias e anedotas" do ex-CEO para não tratar dos fatos e provas sobre a fraude contábil. Segundo os advogados, a política de remuneração era definida pelo conselho, mas quem apresentava as informações sobre o pagamento de bônus por indivíduo era a diretoria.
"Hoje me envergonho"
Ninguém era obrigado a converter o bônus em ações, contou Gutierrez à CVM. "Mas aí estamos aqui nessa sala, todo mundo converteu, você não converteu (...) Você não é obrigado, mas uma conversa que eu teria seria 'vem cá, você não tá confiando na companhia?'".
"Hoje, nessa situação, eu fico envergonhado com a quantidade de sócios que eu criei nessa dinâmica que acreditaram no que eu falei", lamentou.
Gutierrez contou ainda que essa política de criação de sócios representava uma "grande dificuldade" para contratar executivos. No exemplo que ele deu no depoimento, era necessário convencer uma pessoa a ganhar R$ 20 milhões no ano, dos quais R$ 2 milhões seriam salário e R$ 18 milhões seriam ações retidas por cinco anos.
"Aí vinha a pergunta: 'Você me dá um pé na bunda, o que acontece?' 'Você perde a ação'. Então não tem o menor sentido", disse o executivo. "É tão perverso que você perde retroativo, você perde o bônus que você ganhou há quatro anos."
A atual direção das Americanas enviaram o seguinte posicionamento sobre o pagamento de bônus: "O uso de ações e/ou opções de ações para remuneração da administração se trata de uma prática usual de mercado para atrair e reter talentos, no qual os funcionários em cargos gerenciais eram elegíveis ao plano. Com relação à remuneração dos administradores da companhia, conforme dispõe a Lei das Sociedades por Ações, tanto o limite anual global desses executivos quanto às despesas associadas às opções de compra de ações eram fixados em assembleias gerais, realizadas anualmente, com a presença de acionistas ou seus representantes. Essas ações estão em linha com as práticas de governança corporativa seguidas pela Americanas."
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