Brasileira saiu da periferia e hoje lidera divisão internacional da Pfizer
Karla Dunder
Do UOL, em São Paulo (SP)
12/06/2024 04h00Atualizada em 19/06/2024 16h39
Lucila Mouro nasceu em um bairro de baixa renda da zona norte de São Paulo, conseguiu uma bolsa de estudos para cursar o ensino médio em um colégio particular tradicional e trabalhou em telemarketing para conseguir pagar a faculdade. Hoje, a executiva atua como "country manager" (diretora nacional) da Pfizer na América Central e na região do Caribe. Em entrevista ao UOL Economia, Mouro falou sobre os desafios que as mulheres enfrentam em cargos de liderança e sobre equidade de gênero.
Quem é a executiva
Família pobre, mas bem estruturada. Mouro nasceu na Vila Maria, na zona norte de São Paulo, numa família simples, mas bem estruturada, como ela define. Estudou em escola pública e por muitos anos seguiu o roteiro esperado para sua geração. "Pensa numa menina brasileira da periferia. O que você tem na cabeça muito provavelmente é o que eu sou, mas tive muitos privilégios e por conta deles tracei uma jornada diferente das pessoas com quem convivi na minha infância", conta. "Um dos privilégios foi ter uma família que sempre lutou por mim."
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Mãe tirava 'soluções da cartola'. Diante da falta de recursos, a mãe usava criatividade e jogo de cintura para resolver as questões do dia a dia. "Minha mãe conseguia tirar umas coisas da cartola que até hoje não sei como ela conseguia. Eu usei aparelho dentário, o que nos anos 80 era muito caro, e minha mãe conseguiu, por alguma via, me dar acesso ao tratamento por meio de uma universidade. Fui cobaia dos estudantes por 2 ou 3 anos e usei aparelho de forma completamente gratuita."
Bolsa de estudos no ensino médio. A bolsa de estudos no Colégio Presbiteriano Mackenzie, considerado de elite, foi um marco na formação. Ao contrário dos irmãos, ela não precisou trabalhar e pôde se dedicar aos estudos até o vestibular. "Mas sabia que teria de trabalhar para pagar a faculdade. Meu primeiro emprego foi com telemarketing: mais uma vez, segui o roteiro das meninas da minha geração."
Esses são exemplos de alguns privilégios, o que me fez nadar um pouco contra a maré, fazer alguns ajustes na trajetória esperada para aquela brasileira pobre e de periferia, e ocupar espaços inesperados. O primeiro foi chegar a uma escola privada e o segundo passo foi iniciar, desde muito cedo, uma carreira em uma grande empresa.
Lucila Mouro, executiva da Pfizer
Primeiros passos na carreira
Primeiro emprego foi em uma distribuidora de medicamentos. Para pagar a faculdade de Publicidade, foi trabalhar no telemarketing de uma distribuidora de medicamentos. Ali, conheceu pessoas que a levaram a atuar como representante comercial de uma indústria farmacêutica.
Empresa foi comprada pela Pfizer. Na época, Mouro trabalhava para a Pharmacia, empresa que foi comprada pela Pfizer. "Aos 22 anos, tive uma oportunidade de trabalho em uma grande empresa, e esse foi um ponto de inflexão importante na minha jornada. Foi o primeiro passo de muitos dentro da Pfizer. Hoje, mais de 20 anos na empresa, estou casada, tenho dois filhos, moro em San José, na Costa Rica, mas ainda estamos nos adaptando. Digo que, na nossa família, a zona de conforto é estar em adaptação, todo mundo vive bem apesar das mudanças."
Crescimento profissional e equidade
Início de carreira e a barreira do machismo. Em 2002, ano em que oficialmente começou na Pfizer, as indústrias farmacêuticas, principalmente as internacionais, começavam com um movimento de diversidade e inclusão. As mulheres ocupavam os cargos de chegada, além de áreas mais tradicionais como RH e marketing.
Área comercial era majoritariamente masculina. "Eu entrei para a área de vendas, onde até poucos anos antes as posições eram praticamente 100% ocupadas por homens. Essa área de representação, que faz visitas e leva informações e amostras para os médicos, era muito masculina", lembra. Com o movimento de diversidade, surgiu uma vaga de gerência.
Lá nos idos de 2004 e 2005, um time 100% masculino não era bem-visto. Entendo que essa promoção veio em um esquema de cota. Tinha um exército de gerentes de vendas no Brasil, umas 60 ou 70 pessoas, e só tinham duas mulheres. Na época, escutei de todos os lados que eu só tinha sido escolhida por ser mulher. Ignorei. Seja qual for a razão, fui promovida e queria fazer um bom trabalho. Talvez esse tenha sido meu grande momento profissional e hoje eu tenho consciência de quantas barreiras havia ali relacionadas ao machismo, mas já era o começo de uma revolução acontecendo e que tive a chance de iniciar.
Lucila Mouro
Política atual. Em 2008, a Pfizer Brasil instituiu um comitê estruturado de diversidade e inclusão e começou a ter políticas mais organizadas de equidade. A meta para 2025 é ter 47% dos cargos de alta liderança.
Machismo disfarçado de elogio. Apesar da posição ocupada e das conquistas, algumas situações mostram que "ainda temos um caminho a trilhar", diz Mouro. Numa palestra, ao lado de outros colegas de empresa, foi apresentada com "elogios" à plateia, como uma mulher bonita e elegante. "Na verdade, uma pessoa inteligente, que tem um conteúdo muito importante para trazer e que certamente vai agregar, não é bonita e elegante, não é isso que a gente quer ouvir. Lá atrás, faltava espaço para as mulheres, mas até hoje a gente continua enfrentando uma experiência que deixa muito claro que o machismo está aí e por isso a gente precisa de uma participação equânime, que a gente não seja valorizada pela aparência, mas pelo que a gente traz."
Educar e 'contaminar' outras empresas. Para a executiva, o melhor caminho é continuar educando as pessoas em uma política de equidade de gênero e contaminar outras empresas, para que essa cultura de diversidade e inclusão se espalhe.
Falta de mulheres na política. Em reuniões com o governo, segundo a executiva, geralmente não há referências femininas. Por exemplo, em uma reunião para discutir a vacina da Covid-19, um grupo seis mulheres discutiu estratégias apenas com homens. "Mulheres fazendo políticas públicas é fundamental, e queremos para o futuro que um grupo de cinco ou seis mulheres chegue para uma reunião e que isso não seja algo notável."
Atuação internacional e Covid. Lucila atuou como diretora de marketing de doenças raras para a Pfizer América Latina e, também, para mercados emergentes na matriz da companhia em Nova York, nos EUA. Em 2021, passou a comandar a área de Covid-19 na afiliada brasileira, daí a negociação com o governo federal sobre as vacinas.
Mobilização foi o maior aprendizado. Para ela, só foi possível desenvolver uma vacina de forma tão rápida na pandemia porque todos os setores se mobilizaram para tornar aquilo uma realidade. "A Pfizer se uniu à BioNTech, que já desenvolvia a tecnologia da vacina com o RNA mensageiro. Toda a estruturação foi muito rápida e a vacina foi recebida com muita comoção por nós."
A mobilização permitiu que fossem possíveis coisas que a gente nunca imaginou. Fazer uma entrega de mais de 350 milhões de doses de uma vacina que precisava chegar numa temperatura de 60 graus negativos -- não existia uma solução de transporte para isso e em nove meses foi desenvolvida -- aos braços das pessoas, isso nos dava lições diárias de que, quando há mobilização e boa vontade tanto de entidades públicas como privadas para fazer alianças, as coisas realmente acontecem.
Lucila Mouro
Novos rumos. Com o fim da pandemia, veio um novo desafio profissional. Em dezembro de 2023, a executiva assumiu o posto de "country manager" da Pfizer na América Central e na região do Caribe, responsável pela operação de 33 países e territórios e 1.200 funcionários.
Tem sido uma experiência muito recompensadora, chegar numa posição que almejei por muito tempo, ter a oportunidade de ser líder de uma afiliada, e estamos num momento de aumentar o impacto e a disponibilidade de produtos nessas regiões. É uma grande satisfação trazer um pouco do jeito brasileiro de fazer as coisas, no sentido mais positivo dessa conotação, com a nossa flexibilidade, habilidade de comunicação com todos, criatividade, buscar caminhos diferentes para fazer as coisas.
Lucila Mouro