Menos imposto: O dia em que deputados disseram sim às armas e não à carne

O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), controlou as discussões no grupo de trabalho que na quinta (4) apresentou uma proposta para regulamentar a reforma tributária. Sob suas rédeas, os deputados que compuseram o grupo frustraram um pedido feito pelo presidente Lula (PT) de incluir carne na cesta básica, enquanto acenaram para setores caros à oposição, como armas, caminhões e ultraprocessados.
O que aconteceu
Lira controlou o grupo de trabalho desde o início. O presidente da Câmara mudou o rito para regulamentação de PEC (Proposta de Emenda à Constituição): em vez de designar um relator em uma comissão especial para detalhar as mudanças aprovadas em 2023 na PEC 45/2019, Lira escolheu sete deputados dos maiores partidos da Casa para decidirem juntos a regulamentação do IVA (Imposto sobre Valor Agregado), que promete simplificar o recolhimento de impostos no Brasil.
Maioria na Câmara, o centrão — do qual Lira faz parte — dominou o colegiado: Claudio Cajado (PP-BA), Joaquim Passarinho (PL-PA), Augusto Coutinho (Republicanos-PE), Moses Rodrigues (União Brasil-CE), Hildo Rocha (MDB-MA) e Luiz Gastão (PSD-CE) comandaram o principal GT (grupo de trabalho). Reginaldo Lopes (PT-MG) foi o único integrante governista. O GT foi responsável pelo texto (projeto de lei complementar 68/24) que decidiu, entre outras coisas, os produtos que entram na cesta básica —e ficam sem imposto— ou que terão tributação maior por prejudicar a saúde ou o meio ambiente.
Lira quer a reforma como seu legado. A avaliação de uma fonte é que Lira pretende deixar a aprovação da reforma tributária — em discussão no Brasil há três décadas — como marca de sua passagem pelo comando da Câmara, que termina no começo do ano que vem.
Durante os quase dois meses de discussões, Lira proibiu os relatores de comentarem as mudanças. Os parlamentares só detalharam o substitutivo na quinta-feira (4), quando apresentaram o texto à imprensa.
Lira justificou a escolha do colegiado como uma forma de democratizar as discussões. "A participação de todos os partidos, com cada um indicando um membro para o GT, dará uma amplitude de debate", disse ele ao anunciar os GTs.
"Foi uma ideia muito boa do presidente Arthur Lira", disse ao UOL Claudio Cajado (PP-BA), um dos relatores. "Seria humanamente impossível que um único relator pudesse fazer a quantidade de audiências públicas, de mesas de diálogo, de transparência, de debates que nós fizemos nesses quase 40 dias de relatoria", afirmou. "Ouvimos todas as sugestões, as opiniões, as críticas, e conseguimos, dentro do relatório, corresponder e muito."
Para votar [o texto] agora, antes do recesso, um único relator seria humanamente impossível.
Claudio Cajado, deputado e relator
Lira não interferiu em absolutamente nada, não pediu para botar ou para tirar nada, pelo contrário. Foi extremamente isento e nos deixou à vontade para que pudéssemos fazer o relatório que achássemos correto.
Claudio Cajado, deputado e relator
Não à carne, sim às armas

Grupo de trabalho disse "não" a Lula. Ao longo do mês, o presidente defendeu em entrevistas a inclusão da carne na cesta básica, o que livraria o alimento de impostos, barateando o produto para os pobres. "A gente precisa colocar a carne na cesta básica, sim, sem pagar imposto", defendeu ele à Rádio Sociedade, na Bahia. "A carne chique pode pagar um impostozinho. O frango, o músculo, o acém, o colchão mole, tudo isso pode ser evitado [de pagar tributo]."
Apesar dos apelos, Lira e o GT mantiveram o que a PEC já previa. "O texto original do governo não encaminhou a proteína animal como o item da cesta básica", justificou Cajado. "Nunca houve na cesta básica o item proteína. O governo mesmo, se tinha tanto interesse, deveria tê-lo feito quando enviou o projeto [original]."
Já setores associados ao centrão e ao bolsonarismo foram agraciados. O IS (Imposto Seletivo), conhecido como imposto do pecado, foi criado pela PEC para tributar mais os produtos com potencial de prejudicar a saúde e o meio ambiente. Vai pagar mais imposto bebidas açucaradas, como refrigerantes, bebidas alcoólicas e carros, inclusive os elétricos. Mesmo assim, os setores de armas/munições e caminhões de carga — associados ao bolsonarismo— não pagarão tributo maior.
O objetivo de excluir as armas do IS, diz Cajado, era chegar a um consenso entre os relatores do GT. "Dentre os sete relatores, tinha representantes de partidos que não desejariam isso. Então, o relatório tinha que ter consenso", afirmou.
Mais de 60 entidades cobraram dos deputados a inclusão das armas de fogo no imposto do pecado. Se o imposto não incidir sobre as armas e as munições, dizem, a tributação sobre esses bens será reduzida de 89,25% para 26,5%. "As armas de fogo passarão a sofrer a mesma tributação de flores, fraldas, brinquedos e perfumes", diz o ofício enviado aos parlamentares.
Cajado também justificou a exclusão dos caminhões do imposto do pecado. "Taxando o caminhão, você daria com a mão e tiraria com a outra, que era o aumento do frete. E principalmente em função do modal de transporte brasileiro, 80% ser rodoviário. Então, isso causaria um problema muito grande", afirmou.
Comida ultraprocessada também ficou de fora do imposto do pecado. Apesar da pressão da sociedade civil, alimentos como biscoito recheado, salgadinho e macarrão instantâneo —ricos em sódio e conservantes, mas pobres em nutrientes— ficaram de fora do IS.
A justificativa é que os ultraprocessados alimentam os pobres. "Isso [processados] é a base, digamos, da grande massa das pessoas mais humildes, que têm menos condições", diz Cajado. "Nós temos que discutir os ingredientes dele e não propriamente o produto."
Lira e o grupo dizem que isentar a carne aumentariam a alíquota do IVA. O IVA é a junção do IS com o IBC e o CBC. Enquanto o IBC recolherá imposto sobre bens e serviços para estados e municípios, o CBC recolherá o mesmo, mas para a União.
O objetivo do GT era manter a alíquota em 26,5%. Se a carne entrasse na cesta básica, porém, esse índice poderia aumentar 0,6 ponto percentual, para 27,1%.
Governo minimiza derrotas

O governo acredita que essas derrotas ainda podem ser revertidas. A aposta é que a isenção da carne e a cobrança extra a caminhões, ultraprocessados e armas ainda possa acontecer antes da votação do texto em plenário na semana que vem. Cajado concorda: "Nesse primeiro momento, achamos conveniente que essa discussão [sobre armas, caminhões e carnes] deveria ser ampliada para o conjunto da Câmara".
Além disso, a nova lei será revista a cada cinco anos. "A PEC estabelece que de cinco em cinco anos você vai revendo [o que foi decidido agora]", afirmou na sexta (5) o ministro Alexandre Padilha (Relações Institucionais). "Vai permitir que você possa rever as alíquotas para cada um dos setores, como os que estão no chamado imposto do pecado."
Com a regulamentação da reforma tributária, a equipe econômica espera alívio do mercado. Sua aprovação pode reforçar o compromisso do governo com a responsabilidade fiscal. Nas últimas semanas, Lula tem contrariado agentes do mercado ao criticar o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, pela manutenção dos juros em 10,5%. Lula também gerou ruídos ao insinuar, em entrevista ao UOL, que cortar gasto pode ser desnecessário.
Estamos confiantes na aprovação da regulamentação da reforma tributária, que será um passo muito importante pra gente manter a economia do Brasil no trilho certo.
Alexandre Padilha, ministro
O que acontece agora?
O GT que discutiu a carne e os ultraprocessados faziam parte do PLP 68. O projeto de lei complementar deve ser votado na próxima quarta-feira. Outro PLP, o 108/24, também deve ser enviado para votação na próxima semana. Este último tratará da regulamentação do comitê gestor do IBS e das novas regras para lidar com disputas administrativas e judiciais dos novos tributos.
A implantação da reforma será aos poucos. Após a provável votação dos PLPs na semana que vem, a aplicação das mudanças começarão a ser implantadas a partir de 2026. A expectativa é que todas as regras só entrem em vigor em 2033.
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