Não era ingenuidade: por que EUA cobravam tarifas mais baixas de importação
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O argumento do presidente americano, Donald Trump, de que os Estados Unidos estão sendo "enganados há anos" no comércio global não é o que acontece na prática, apesar de usado como justificativa para o "tarifaço", que entra em vigor hoje. O país sempre manteve tarifas de importação mais baixas como uma forma de proteger a própria economia. Especialistas ouvidos pelo UOL apontam que essa estratégia era calculada, e o que parecia "ingenuidade" era, na verdade, uma movimentação inteligente dentro do sistema global
O que aconteceu
Desde a campanha eleitoral, Donald Trump fala que os EUA são "vítimas" de um grande complô mundial contra a economia americana. Até na ordem executiva do "tarifaço" Trump considera que as políticas adotadas pelos parceiros comerciais "constituem uma ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional e à economia dos Estados Unidos".
Especialistas afirmam que não há "ingenuidade" por parte do governo americano, que sempre manteve tarifas de importação mais baixas para beneficiar a própria economia. "A ideia de tarifas baixas não é nova. Ela segue o conceito de vantagem comparativa, de David Ricardo", afirma Phil Soares, economista e chefe de análise da Options & Company. Ele explica que, com tarifas mais baixas, os Estados Unidos conseguiam importar produtos de baixo custo e, ao mesmo tempo, exportar itens de maior valor, como tecnologia avançada e aeronaves. Essa estratégia se sustentava na especialização dos países, onde cada um produzia o que fazia melhor, resultando em uma maior eficiência para todos.
Ideia por trás das tarifas baixas é antiga e se baseia no conceito de vantagem comparativa, proposto no século 19 por David Ricardo. A lógica é simples: cada país se especializa no que faz melhor, aumentando a eficiência da produção global.
Além disso, a política econômica americana sempre buscou fortalecer o poder de compra da população. Gustavo Cruz, estrategista-chefe da RB Investimentos, destaca que os EUA se beneficiaram ao manter um equilíbrio comercial positivo. "Mesmo com tarifas [de importação] mais altas em alguns produtos, o país exportava bens que tinham valor agregado muito maior", afirma. Essa troca permitiu, na avaliação de Cruz, que o país mantivesse a inflação sob controle, o que, por sua vez, impulsionava o crescimento econômico. "A baixa inflação favoreceu o poder de compra da população, o que ajudou a manter uma economia aquecida", acrescenta.
Comércio no mundo se fortaleceu após a Segunda Guerra Mundial, quando os EUA assumiram o papel de promotor do livre comércio, ajudando a criar um mercado global. "Mesmo com tarifas altas, os EUA se beneficiavam ao exportar tecnologia de ponta para os países mais pobres", afirma Cruz.
Globalização, especialmente a partir dos anos 1990, impulsionou ainda mais essa dinâmica. A integração de mercados permitiu a formação de cadeias produtivas globais, como a produção na Ásia e o design nos EUA. Com isso, os preços de muitos bens caíram, beneficiando os consumidores americanos, como aponta Leila Ghiorzi, mestre em economia e head de conteúdo da Faz Capital. "Os EUA mantiveram a inflação baixa ao importar produtos mais baratos, o que favoreceu o crescimento da economia", explica. Ela lembra que, ao mesmo tempo, os Estados Unidos conseguiram manter a indústria de alta tecnologia competitiva.
Entretanto, essa estratégia começou a ser contestada com o crescimento da China. O governo de Donald Trump intensificou o protecionismo, com a imposição de tarifas mais altas. Para especialistas, esse movimento não é só econômico, mas também geopolítico. A competição entre EUA e China tem alterado a dinâmica do comércio global, que já não é mais tão centrado apenas em interesses econômicos.
Apesar de tudo, globalização não acabou, mas está sendo reconfigurada. Para Ghiorzi, o novo conceito de "slowbalization" está ganhando força, com cadeias produtivas mais curtas e maior foco em resiliência. O movimento de "reshoring" e "friendshoring" —que busca trazer a produção de volta para casa ou para países aliados, é uma resposta às novas tensões geopolíticas. A estratégia dos EUA, antes baseada na colaboração global, agora reflete um cenário mais fragmentado, com uma competição acirrada entre blocos econômicos.
Estudo feito pela DHL em parceria com a New York University Stern School of Business, citado pela head de conteúdo, aponta que o comércio global de mercadorias deve crescer a uma taxa anual composta de 3,1% até 2029. O relatório destaca que países como Índia, Vietnã, Indonésia e Filipinas estão entre os que mais vão contribuir para esse avanço, refletindo o potencial significativo de crescimento do comércio nessas regiões. "Com essas duas forças antagônicas, tendência é de um mundo mais fragmentado, com blocos econômicos mais fechados e competição entre modelos econômicos e tecnológicos", pontua Ghiorzi.