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Entenda por que a China não recua em cabo de guerra com os EUA

Colaboração para o UOL, em Campinas (SP)

10/04/2025 05h30

No cada vez mais evidente "cabo de guerra" de anúncios de represálias tarifárias, nota-se uma postura mais agressiva da China em enfrentar os Estados Unidos. Para especialistas em relações internacionais ouvidos pelo UOL, essa firmeza do governo Xi Jinping mostra uma resiliência da economia chinesa, que está cada vez mais voltada para suprir toda a demanda interna sem necessitar de importações, em um plano que pretende, até 2050, tornar o país uma economia avançada e de alta renda.

O que aconteceu

EUA e China têm subido tarifas contra o adversário desde o início da semana. Movimentação mais recente foi na tarde de ontem, com Donald Trump aumentando para 125% a tarifa dos produtos chineses que entram nos Estados Unidos. Até então, a alíquota era de 104%.

China disse que "vai lutar até o fim" e apresentou queixa formal à OMC (Organização Mundial do Comércio). Para Rodrigo Barreto, economista e professor de Administração da FEI (Fundação Educacional Inaciana), os Estados Unidos estão encontrando uma China que conhece melhor a questão. "O governo chinês coordenou medidas a fim de conter os efeitos domésticos, colocou mais controles sobre as empresas americanas e restringiu exportações de muitas delas", explica.

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Motivo dessa atitude pode ser explicado por meio da VDC (Visão de Desenvolvimento da China) 2020-2050. A VDC foi citada em um artigo publicado na revista Tempo do Mundo, em 2020, onde os pesquisadores Xie Wenze e Li Hui explicam que a estrutura do plano é baseada em dois eixos: o horizontal, que representa a modernização econômica e a integração global; e o vertical, que visa à construção de uma "comunidade humana com destino comum". Para isso, o país aposta em três pilares: urbanização, industrialização e cultura de poupança; e em três princípios norteadores: abertura, compartilhamento e inclusão.

China quer, até 2050, se tornar uma economia avançada e de alta renda, projetando crescimento baseado em inovação tecnológica, fortalecimento do mercado interno e reformas estruturais. A urbanização crescente, a modernização industrial e a alta taxa de poupança são tratados como alicerces desse avanço, conforme o artigo.

"Este tipo de resposta enérgica deixa claro que a China não cederá à pressão unilateral, alavancando a posição como principal economia emergente e grande parceiro comercial de dezenas de países", aponta Barreto. Na prática, país apenas segue o plano de depender menos de importações, e menos ainda das que vem dos Estados Unidos, conforme o professor. Após anos de aprendizado desde o início da guerra comercial em 2018, o país investe em estimular o consumo doméstico, inovação tecnológica e cadeias de suprimentos autônomas.

Mudança já começou. País busca a autossuficiência em setores estratégicos, como semicondutores, baterias e inteligência artificial. O professor de Administração explica que o resultado dessa mudança econômica, chamada de "estratégia de dupla circulação", já começa a mostrar resultados. Em 2024, o consumo interno superou o investimento e as exportações como principal motor do crescimento, e mercados emergentes da Ásia e África passaram a representar mais da metade do comércio exterior chinês, diluindo o peso dos EUA. O PIB (Produto Interno Bruto) chinês subiu 5% no ano passado, dentro da expectativa do governo.

Isso indica a formação de um mercado doméstico muito maior, com uma economia mais orientada ao mercado doméstico. Com uma base de consumidores de 1,4 bilhão de pessoas e cadeias produtivas cada vez mais independentes, a China se capaz de absorver choques externos e manter o desenvolvimento mesmo sob tarifas altas.
Rodrigo Barreto, economista e professor de Administração da FEI (Fundação Educacional Inaciana)

Outro passo é a criação do "yuan digital", para reduzir a dependência do dólar. Por exemplo, os acordos feitos pela China com Rússia, Arábia Saudita, Irã e Brasil podem criar um ecossistema alternativo onde o dólar não é mais necessário. "Isso pode parecer sutil, mas é uma das estratégias mais ousadas do século 21", argumenta Carlos Rifan, presidente da Anapri (Associação Nacional dos Profissionais de Relações Internacionais), considerando que essa é uma forma de desacoplar pouco a pouco a economia chinesa do sistema financeiro controlado pelo ocidente, especialmente se acordos feitos dentro do conceito dos Brics (grupo de países de mercado emergente em relação ao desenvolvimento econômico) forem referenciados nessa moeda.

Investimentos militares x investimentos em tecnologia. Rifan lembra de uma conversa do ex-presidente americano Jimmy Carter a Trump, em 2019. O ex-presidente falou sobre o desenvolvimento econômico da China já naquela época, e disse: "Quantas guerras a China lutou desde 1980? Nenhuma". "Enquanto os Estados Unidos gastam US$ 300 bilhões por ano só em setores militares, a China gasta este mesmo valor na evolução e desenvolvimento de tecnologias, como o próprio Yuan digital", afirma.

"Tigres asiáticos" também têm relevante papel no desenvolvimento chinês. O nome é dado à Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong e Cingapura, que tiveram um rápido crescimento econômico a partir da segunda metade do século 20. "Esses territórios operam como peças chaves numa arquitetura de suprimentos e influência regional chinesa. Junto com Vietnã, Tailândia e Malásia, fazem parte daquilo que chamamos de fábrica estendida da China. Embora não tenha controle direto sobre de Pequim, eles são essenciais para abastecer a indústria chinesa", aponta o presidente da Anapri. Não coincidentemente, todos tiveram tarifas recíprocas elevadas, como parte de um objetivo maior de tentar sufocar a economia chinesa.

Não adianta os Estados Unidos taxar o mundo todo, arrecadar, mas ao mesmo tempo gastar esse dinheiro para fins militares, querendo impor, por exemplo, valores morais e a cultura, trabalhando a guerra como, na verdade, como uma guerra cultural e não como uma guerra militar
Carlos Rifan, presidente da Anapri (Associação Nacional dos Profissionais de Relações Internacionais)

China fez a lição de casa: industrializou o país e ofereceu formação escolar e profissional melhor e maior para o povo. Essa é a avaliação de Rodrigo Simões, professor de Economia da UAM (Universidade Anhembi Morumbi). Ele entende que essa política chinesa pode também trazer benefícios para outros mercados, como o Brasil, uma vez que, mesmo com todo o desenvolvimento, não é tudo que o país vai conseguir produzir para atender a demanda interna. "Ela também vai continuar comprando de outros países. Então, a relação dos países com a China tende a ser cada vez maior, até por causa do aumento da renda média do cidadão chinês", pondera.

A China não quer impor a cultura, mas ela quer fazer bons negócios com o resto do mundo. Então, por isso, que se acredita que quem souber fazer uma boa parceria, alimentar essa parceria ainda terá grandes décadas de bom comércio global. Nisso o Brasil pode levar uma vantagem
Rodrigo Simões, professor de Economia da UAM (Universidade Anhembi Morumbi)


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