Como trabalhar na Itália após mudança na lei de cidadania?
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Deputados italianos decidiram ontem de uma vez por todas que a transmissão e o reconhecimento da cidadania por direito de sangue só vale para duas gerações nascidas fora da Itália. No Brasil, a medida pode impactar a vida daqueles que sonhavam em trabalhar na Europa, sobretudo na Itália. Na prática, a mudança vai burocratizar o acesso aos direitos à cidadania desses descendentes e, por tabela, dificultar o acesso ao trabalho lá.
O que o descendente precisa saber para trabalhar na Itália?
O decreto-lei limita a transmissão da cidadania italiana apenas aos filhos e netos daqueles que têm como única e exclusiva a cidadania italiana até a data da sua morte. Antes, segundo o advogado Fabio Gioppo, especialista em Direito Internacional e cidadania italiana, do escritório Gioppo & Conti, o reconhecimento desse direito não tinha limite de gerações, desde que comprovado os vínculos por registro documental.
Com a restrição, as oportunidades de trabalho também ficam prejudicadas. Gioppo lembra que a cidadania italiana garantia não apenas o resgate às origens ou a história da família, mas também de trabalho. "Porque uma coisa é você ir como um brasileiro para a Itália para buscar uma oportunidade de emprego, outra coisa é você ir como um ítalo-brasileiro. Um italiano reconhecido, com certeza você vai ter muito mais oportunidades de emprego", afirma.
Como alternativa, a nova lei cria uma espécie de visto de trabalho voltado para aqueles que não têm cidadania e perderam o direito ao reconhecimento. Segundo o especialista, o visto de trabalho é uma espécie de "flexibilização" para aqueles que não poderão ter a cidadania e dará direito a residência e trabalho na Itália por dois anos. Ele cita, como exemplo, o caso de um bisneto de italiano, que com o decreto não está mais elegível para o pedido de cidadania, mas que poderá ter acesso ao visto de trabalho pelo período estipulado.
Mas não há, porém, as normativas para acesso ao visto de trabalho. Até o momento, a lei aprovada pelo Poder Legislativo italiano não especificou as regras para o acesso ao visto de trabalho e se o descendente terá de comprovar uma atividade laboral fixa desde o momento do pedido ou se poderá estar no país para isso. "O decreto, que agora será transformado em lei, tem muitas lacunas nesse sentido", diz Gioppo.
O que se sabe é que o visto de trabalho será concedido àqueles que comprovarem a descendência italiana. "Provavelmente, a pessoa terá que apresentar um comprovante de residência, fazer a aplicação do Permesso Di Soggiorno e apresentar documentos para poder trabalhar", explica o especialista em cidadania italiana. O Permesso Di Soggiorno é uma permissão de estada ou residência por mais de 90 dias na Itália e deve ser observada por todos que querem ir ao país.
Você tem 30 milhões de brasileiros que possuem o direito ao reconhecimento da cidadania, uma restrição dessa faz cortar pelo menos para um quarto das pessoas que poderiam ter o direito a essas várias oportunidades que a cidadania dá de trabalho e de estudo não só nos países europeus, mas em outros países que possuem um acordo com o bloco europeu.
Fabio Gioppo, advogado e especialista em direito internacional e cidadania italiana, do escritório Gioppo & Conti
Lei restringe imigração. "Esse é um decreto dificulta muito para nós, brasileiros, eu mesma teria muita dificuldade para poder trabalhar e fazer tudo o que fiz na Itália", comenta Renata Bueno, ex-parlamentar italiana e presidente do Instituto Cidadania Italiana. Renata é bisneta de italiano e se mudou para o país em 2002 para fazer uma pós-graduação em Direito.
Cidadania e judicialização
Na Itália, o Senado impediu que a medida fosse retroativa. Para as famílias que já protocolaram seus pedidos até 27 de março, os processos serão avaliados a partir da legislação anterior. O que não foi o caso de Daniel Puton, 24, que descobriu que era tetraneto de Giuseppe Putton, que veio ao Brasil em 1877, aos 17 anos. Para ele, o projeto de Trajani, "foi um ataque covarde" e vai distanciar os descendentes da Itália.
Itália forçou mudanças nos planos para quem sonhava em trabalhar na Europa. Desde 2021, Daniel estava buscando as certidões da ancestralidade e planejava fazer o pedido ao final do ano no consulado no Espírito Santo. "Sempre foi um sonho morar na Europa e vejo, com a cidadania, uma forma mais fácil disso acontecer, já que não precisaria de visto de trabalho", diz. Assim como Daniel, muitos migrantes devem aguardar para saber como a legislação vai sair da Câmara dos deputados, mas não desconsidera entrar com um processo judicial.
Ação judicial se tornou o principal caminho para conseguir a cidadania. "Quem realmente trabalha com Direito internacional sabe que esse é um decreto inconstitucional. Mesmo que os juízes na primeira instância façam sentenças desfavoráveis, vamos subir para Corte de apelo, até conseguir o reconhecimento da cidadania", explica a head of legal da Você Europeu, Tammy Cavaleiro. Para entrar com um processo na Justiça italiana é preciso pagar uma taxa de 600 euros, ou R$ 3.800 na cotação desta quarta-feira. Caso seja preciso subir para outras instâncias, taxa de adicionais entre 900 e 1.200 euros são exigidas, além dos honorários dos advogados que estão na média de R$ 40 mil.
Lei restringe, mas não acaba com direito a cidadania. Além dessas alternativas, o advogado Fabio Gioppo destaca que o direito à cidadania italiana dos descendentes não acabou. "A lei restringe, porém, reconhecemos que ela é inconstitucional. Uma coisa é a aprovação política do decreto, mas agora entramos na esfera judicial", afirma.
Há decisões consolidadas da Suprema Corte Italiana, com jurisprudências, reconhecendo o direito dos ítalo- brasileiros sem qualquer limite de geração. A partir de agora, a pessoa que tem o direito, que quer trabalhar na Europa, em qualquer parte do mundo, com o benefício da cidadania italiana, tem que entrar com o processo através da via judicial.
Vistos e intercâmbio como porta de entrada
Para conquistar a cidadania, o governo exige a residência de dois anos. Na Itália, a entrada de estrangeiros é regulada pelo Decreto Flussi e engloba diferentes tipos de trabalhos — sazonal, autônomos e contratos formais — em setores diversos, como agricultura, construção civil, hotelaria e turismo.
Brasileiro que não é descendente direto de italianos também pode recorrer a vistos especiais de trabalho ou estudo. Os vistos para estudantes, por exemplo, podem servir de porta de entrada para aqueles que buscam uma pós-graduação no exterior. Outro caminho são as cotas para trabalhadores estrangeiros que podem exercer a profissão na União Europeia (UE). Uma alternativa são as parcerias com cooperativa e sindicatos que podem facilitar ou intermediar esses contratos.
Empresas italianas podem favorecer o intercâmbio profissional. Para Renata, além dos setores mais voltados à mão de obra e serviços, o setor de tecnologia é um potencial empregador de brasileiros. No Brasil, empresas italianas, como a Zucchetti, possuem políticas de intercâmbios entre profissionais, principalmente, como uma forma de reconhecimento de resultados e incentivo à ascensão na empresa.
Os colabores da empresa podem ser uma comunidade de apoio ao imigrante. Ao contrário das vezes quando um trabalhador vai sozinho para outro país, os colaboradores de uma mesma empresa podem ser uma nova rede de apoio para esses profissionais migrantes. Apesar dos custos de câmbio serem um fator contrário a mudança de unidades, a diretoria de RH da Zucchetti Brasil, Ana Paula Zancanaro Socha, entende que o intercâmbio entre culturas de negócio enriqueça o ambiente empresarial.
O que mudou com a lei
Bisnetos e tataranetos perdem o direito à cidadania automática. Desde 28 de março de 2025, o vice primeiro-ministro Antonio Tajani definiu que o processo de cidadania administrativa, conhecida como cittadinanza per sangue, deixaria de valer para as gerações, exceto filhos e netos, posteriores à criação do reino da Itália, em 1861, como era previsto em lei. Com isso, apenas parentes de 1ª e 2ª geração de italianos teriam o direito à cidadania desde o nascimento.
O Senado restringiu ainda mais os diretos à cidadania. Na última quinta-feira, 15, o Senado italiano intensificou o cerco em torno do direito à cidadania de descendentes ao redor do mundo. Além de aprovarem ao decreto do executivo, o legislativo aplicou uma nova regra: só seriam considerados válidos os casos em que os ascendentes diretos, de avós ou pais, possuíssem a exclusivamente da cidadania italiana, inclusive no momento do falecimento.
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