Coach e grifes usam couro de área desmatada da Amazônia, diz ONG britânica
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A cadeia de suprimentos de couro da marca norte-americana de bolsas e acessórios Coach e de outras grifes de luxo internacionais está ligada a fazendas de gado envolvidas com desmatamento ilegal na Amazônia, especialmente no estado do Pará, que sediará a COP30 (30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas) neste ano. A conclusão faz parte de uma investigação da ONG britânica Earthsight divulgada hoje.
O que aconteceu
O caso da Coach, grife famosa no segmento de bolsas e acessórios premium, é o que mais chama atenção nos dados reunidos na denúncia da organização. Mas também são citadas na investigação grifes internacionais como Fendi, Chloé, Hugo Boss e Louis Vuitton, cujas cadeias de suprimentos de couro estão envolvidas com desmatamento ilegal e violações de direitos indígenas na Amazônia brasileira.
O centro da investigação é o frigorífico Frigol e o curtume Durlicouros. Segundo o relatório da Earthsight, o Frigol comprou centenas de cabeças de gado de fazendas com histórico de desmatamento ilegal, inclusive dentro de terras indígenas, no Pará, violando regras ambientais e territoriais. O frigorífico está entre os cinco maiores do país e abastece a Durlicouros, que é o maior exportador de couros do Pará para a Europa.
A Earthsight é uma organização sem fins lucrativos sediada no Reino Unido. A ONG é conhecida por realizar investigações aprofundadas para expor crimes ambientais e sociais, injustiças e as ligações com o consumo global. Sua mais nova investigação é intitulada "O preço oculto do luxo: o que as bolsas de grife europeias estão custando à floresta amazônica" e tem como base decisões judiciais, registros de embarques, imagens de satélite e documentos oficiais.
Os investigadores também infiltraram-se em feiras do setor de couro na Europa, para demonstrar como o couro processado por fornecedores brasileiros e oriundos do desmatamento ilegal acaba chegando a marcas de luxo. Isso inclui as grifes que se apresentam como sustentáveis, como a Coach.
Siga o couro: o caminho da produção ilegal
Falta de rastreabilidade na cadeia do couro no Brasil permite que o material de origem ilegal seja "lavado". Ao analisar os dados, a organização encontrou brechas em relação à certificação de que as peles de animais para transformá-las em couro tinham origem legal. Essa falha permite, por exemplo, que animais de fazendas irregulares, associadas à áreas desmatadas na Amazônia, sejam transferidos para propriedades "limpas", especialmente no caso dos fornecedores indiretos.
Entre 2020 e 2023, mais de 40% dos pecuaristas alvo das ações judiciais por pecuária ilegal forneceram gado para unidades da Frigol no estado sede da COP. O MPF (Ministério Público Federal) identificou que, ao todo, 47.200 cabeças de gado foram criadas ilegalmente dentro da Terra Indígena Apyterewa, no Pará, sendo que quase a metade delas vendidas ao frigorífico.
Frigol também é alvo de outras denúncias. Um levantamento elaborado pela ONG norte-americana EIA (Agência de Investigação Ambiental, na sigla em inglês) mostra que, entre janeiro de 2020 e o início de 2023, a FriGol também teria recebido animais de fazendas na Amazônia utilizadas para burlar as regras ambientais.
Ainda no ano passado, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) também multou a empresa em quase R$ 2 milhões. Segundo o órgão, a Frigol adquiriu gado de áreas embargadas por desmatamento em Tucumã, também no estado paraense.

As denúncias contínuas de irregularidades representam uma violação. Em 2009, a empresa produtora de carne assumiu o compromisso público de não comprar animais criados em propriedades que desmataram, usaram trabalho análogo à escravidão ou cometeram outras irregularidades socioambientais.
A ligação entre Frigol e Durlicouros. Ao conectar a produção de gados com as empresas de curtume, a ong britânica identificou como a maior exportadora de couro do Pará, a Durlicouros, que é cliente do frigorífico. O fato, segundo Earthsight, foi evidenciado pelas redes sociais de ambas as empresas e confirmado em uma carta enviada pela Durlicouros à organização no ano passado.
A Durlicouros é a maior exportadora de couro do Pará, responsável pelo envio de 90% do couro do estado para a Itália entre 2020 e 2023 (14.726 toneladas), expondo o mercado europeu ao risco de produtos de couro ligados ao desmatamento e a violações de direitos em suas cadeias de fornecimento.
Earthsight, no relatório "O preço oculto do luxo: o que as bolsas de grife europeias estão custando à floresta amazônica"
A investigação detalha que quase um quarto das exportações de couro da Durlicouros do Pará para a Itália foi adquirido por apenas dois curtumes da região do Vêneto, na Itália. São eles: Conceria Cristina, pertencente ao Gruppo Peretti, e a Faeda. As duas empresas são conhecidas por fornecer couro a marcas de destaque nos setores de design de interiores, automotivo e da moda de alto padrão.
Entre essas marcas está a Coach, conhecida por suas bolsas de luxo feitas com couro. Tanto a Conceria Cristina quanto a Faeda confirmaram a investigadores da Earthsight, em uma feira do setor, que fornecem couro para a Coach.
Em uma reunião 'undercover' com representantes do Gruppo Peretti, os investigadores foram informados por um representante da Conceria Cristina que a Coach utiliza regularmente couro do Brasil -- revelando a disposição da marca em ignorar os riscos de desmatamento e violações de direitos humanos.
Earthsight
A Coach é a principal marca do grupo Tapestry, Inc., um conglomerado de moda multinacional com sede nos Estados Unidos. No Brasil, uma bolsa da marca é enquadrada na categoria de "luxo acessível", com preços que variam de R$ 598 a R$ 6.498,00. A companhia, segundo apresentação em seu site, foi fundada em 1941 como uma empresa familiar e hoje tem alcance mundial com mais de 950 lojas em 21 países.
Popularidade da Coach disparou em parte devido ao foco na chamada "geração da sustentabilidade", a Geração Z. A demanda por produtos da Coach aumentou 332% em 2024, em relação ao ano anterior, segundo dados da Vogue Business, baseada no reposicionamento sustentável da marca. Em entrevista ao site da revista, o presidente da Coach, Todd Kahn, disse que o mercado europeu estava "pegando fogo".
A Coach não respondeu a diversos pedidos de comentário da organização sobre a investigação. O UOL também tentou contato com a companhia, mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem. A Earthsight afirma que algumas marcas de luxo abriram mão completamente do uso de couro brasileiro e implementaram sistemas de rastreabilidade e testes científicos para garantir que seus produtos não estejam ligados ao desmatamento. Entretanto, a Coach não apresentou qualquer evidência de que possua um sistema para evitar tais riscos.
Esse reposicionamento sustentável entra em contradição com as escolhas de fornecimento da marca. Embora não seja possível afirmar com certeza que o couro usado nos produtos da Coach venha de gado criado ilegalmente na Amazônia, o uso de couro brasileiro e de dois fornecedores com cadeias de suprimento expostas a esses riscos pode implicar seus clientes em desmatamento e violações de direitos indígenas.
Earthsight
Outras grifes como Fendi, Louis Vuitton e Hugo Boss afirmam seguir padrões sustentáveis ao comprar couro apenas de curtumes certificados pelo Leather Working Group (LWG). Essa certificação avalia o desempenho ambiental de curtumes, mas não garante que o couro seja livre de desmatamento ou de violações de direitos humanos, já que não exige rastreabilidade até as fazendas de origem.
O próprio LWG reconheceu à Earthsight que sua certificação não assegura cadeias de fornecimento éticas ou rastreáveis até a criação do gado. Assim, curtumes podem receber a classificação Ouro ou Prata mesmo sem saber de onde vem o couro cru, o que torna essas metas sustentáveis das marcas ineficazes para combater o desmatamento, segundo a investigação.
Um exemplo disso é a Durlicouros, que afirma ter rastreabilidade total. Como mostrou o relatório, porém, a empresa compra couro da Frigol, que não rastreia fornecedores indiretos além do primeiro nível, justamente onde ocorre a chamada "lavagem de gado".O volume de fornecimento do frigorífico para Durlicouros não é público e ambas as empresas não esclareceram quando questionadas pela Earthsight.
Outros compradores dos curtumes italianos. Chanel, Chloé, Hugo Boss, as marcas Fendi e Louis Vuitton da LVMH, bem como as marcas Balenciaga, Gucci e Saint Laurent do Kering Group disseram à Earthsight que não usam couro brasileiro, mas Fendi e Hugo Boss iniciaram investigações após tomarem conhecimento das descobertas da Earthsight.
A Chanel revelou que encerrou recentemente seu relacionamento com a Faeda, após perder a confiança em seu sistema de rastreabilidade. A Chloé foi a única marca a fornecer uma metodologia detalhada de rastreamento de couro à organização britânica. Já a Faeda afirmou que não forneceu couro brasileiro às marcas de moda. Conceria Cristina, por sua vez, não respondeu aos pedidos de comentário dos investigadores.
O que dizem os envolvidos. Apesar de alegarem práticas responsáveis, tanto a Frigol quanto a Durlicouros evitaram responder diretamente sobre como garantem a origem legal do couro, segundo o estudo. A Frigol afirmou seguir um protocolo de monitoramento desenvolvido com o MPF e a ONG Imaflora, garantindo que 100% do gado comprado de fornecedores diretos siga critérios socioambientais. Para fornecedores indiretos de primeiro nível (Tier 1), quando fornecedores de gado vendem para os fornecedores diretos da companhia, a empresa usa a ferramenta Visipec. A Earthsight observa, porém, que essa forma de monitoramento cobre apenas parte da cadeia, já que o gado no Brasil passa por vários níveis antes de chegar aos frigoríficos.
Segundo a própria Frigol aos investigadores, apenas 68% do gado dos fornecedores 'tier 1' atende aos seus critérios baseados em regras contra desmatamento, trabalho escravo e invasão de terras indígenas. Ou seja, um terço do gado de fornecedores indiretos analisados não cumpre esses padrões, revelando brechas na rastreabilidade e no controle da origem do gado. Em nota ao UOL, a empresa alegou, no entanto, que monitora 100% dos fornecedores indiretos. "A FriGol tem como meta de mitigar o desmatamento por indiretos até 2030, com intenção de antecipar para 2025 a mitigação do desmatamento indireto nível 1".
A FriGol está trabalhando em alinhando com o estado do Pará, que vem se desenvolvendo de forma pioneira para se tornar o primeiro estado do Brasil com monitoramento individual de animais com foco em critérios socioambientais. Em paralelo, a companhia apoia iniciativas privadas para monitorar individualmente animais, por isso, aderimos ao Protocolo Primi, único em funcionamento no estado do Pará e que tem se tornado referência no monitoramento individual de animais.
Frigol, em nota ao UOL
A Durlicouros afirmou ter alcançado rastreabilidade completa das peles, incluindo a identificação do gado desde o nascimento através de códigos marcados a laser nas peles. A investigação ressalta, porém, que dado que a Frigol não monitora todos os seus fornecedores indiretos, não está claro como a Durlicouros pode garantir que o couro que utiliza esteja livre de desmatamento ou violações de direitos. Questionada pelo UOL, a empresa disse ser pioneira na criação de um programa próprio de rastreabilidade de fornecedores indiretos, "reconhecido internacionalmente como inovador e eficaz".
Todas as unidades da Durlicouros possuem certificação do Leather Working Group (LWG), assegurando padrões elevados de sustentabilidade, rastreabilidade e responsabilidade ambiental, de acordo com a finalidade de cada uma das unidades.
Durlicouros, em nota ao UOL

A influência no desmatamento da Amazônia
Sete das oito unidades da Durlicouros no Brasil têm certificação Ouro do LWG, incluindo a do Pará, mesmo com seu principal fornecedor envolvido em múltiplas denúncias de pecuária ilegal em 2024. Segundo o estudo, o caso revela uma combinação de certificações frágeis e falta de transparência nas cadeias de fornecimento acaba funcionando como uma fachada de sustentabilidade. "Os consumidores de produtos de luxo esperam que os altos preços ofereçam alguma garantia de que não estejam contribuindo para o desmatamento ou a invasão de terras indígenas. Esta investigação mostra que essa confiança é equivocada", afirma o líder da equipe da Earthsight para a América Latina, Rafael Pieroni.
Para a organização, o ideal seria uma auditoria adequada das empresas em todas as suas próprias cadeias de suprimentos. Sem isso, o risco é que o couro ilegal das bolsas de luxo continue alimentando o desmatamento da Amazônia. Dados do Imazon mostram que entre agosto de 2023 e julho de 2024, 91% do desmatamento no bioma foi realizado sem autorização. Sendo que mais de 90% das áreas desmatadas na amazônia brasileira são abertas para a criação de gado.
Regulamento de Desmatamento da União Europeia. A Earthsight também cobra a aprovação do EUDR (Regulamento sobre Produtos Livres de Desmatamento da União Europeia), que exige que as empresas comprovem que o couro e outras commodities que utilizam são "livres de desmatamento". A lei já deveria estar em vigor, mas foi adiada para 30 de dezembro de 2025 após intenso lobby. Isso deve ter efeitos sobre o Brasil, que é o terceiro maior exportador mundial de couro cru e tem na Itália seu terceiro maior cliente.
Os esforços para aumentar a transparência e a rastreabilidade nas cadeias de suprimentos de gado são vitais e devem ser priorizados pelo governo. Por muito tempo, marcas e varejistas ocidentais falharam repetidamente em cumprir suas próprias metas, transferindo a responsabilidade de identificar danos em suas cadeias de suprimentos para esquemas de certificação deficientes.
Rafael Pieroni, líder da equipe da Earthsight para a América Latina
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