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ENFOQUE-Irã sofre para comprar alimentos por sanções dos EUA; vendas de milho do Brasil caem

30/07/2020 15h48

Por Jonathan Saul, Ana Mano e Joori Roh

LONDRES/SÃO PAULO/SEUL (Reuters) Afetado pelo impacto de sanções norte-americanas, pelo colapso nas vendas de petróleo e por uma situação severa da epidemia de Covid-19, o Irã está lutando para comprar alimentos e medicamentos e evitar uma escassez de ofertas. Mas a tarefa não tem sido nada fácil.

Apesar de esses produtos estarem isentos das sanções, bancos e governos relutam em transferir ou receber dinheiro iraniano, temendo violar involuntariamente as complexas restrições aplicadas pelos Estados Unidos, de acordo com cinco fontes do mercado.

Um canal comercial aprovado, lançado pelo governo suíço e apoiado por Washington --o Acordo de Comércio Humanitário da Suíça (SHTA, na sigla em inglês)--, entrou em vigor em fevereiro, depois de mais de um ano de negociações, para facilitar as compras iranianas junto a empresas suíças.

Ainda assim, o banco central do Irã (CBI, na sigla em inglês) não tem conseguido transferir para contas bancárias ligadas ao SHTA os bilhões de dólares que acumulou com exportações de petróleo entre 2016 e 2018, disseram à Reuters as cinco fontes com conhecimento do assunto.

O dinheiro foi acumulado em contas de bancos de países para os quais o Irã vendeu petróleo --especialmente na Ásia, onde tem Japão e Coreia do Sul entre os principais clientes-- nos anos que sucederam o acordo nuclear assinado pela República Islâmica com grandes potências globais, antes de o governo Donald Trump se retirar do pacto e voltar a impor sanções em 2018.

Os fundos foram congelados quando as sanções, que tiveram como alvo o CBI e transações em dólares de outras entidades iranianas, foram reintroduzidas. Como resultado, bancos internacionais e seus governos --com quem buscam autorização-- têm receio de permitir que fundos sejam liberados sem a autorização específica de Washington para cada transferência, disseram as fontes.

O bloqueio, segundo elas, ilustra como a complexidade das sanções norte-americanas fez com que diversos bancos, empresas e países aumentassem a cautela em fazer negócios com o Irã, mesmo quando as isenções existem, pois qualquer violação pode resultar em enormes penalidades financeiras e até uma exclusão do fundamental sistema financeiro dos EUA.

O impacto também foi sentido em outras áreas. A Reuters noticiou anteriormente que muitas companhias de navegação e seguradoras estrangeiras não estão dispostas a fornecer navios ou cobrir as viagens, mesmo para o comércio aprovado.

COREIA DO SUL, JAPÃO

Autoridades sul-coreanas e japonesas se recusaram a transferir dinheiro através da Suíça sem aprovação específica dos EUA, de acordo com as fontes, que pediram para não ser identificadas por causa da sensibilidade do assunto.

O Ministério das Relações Exteriores da Coreia do Sul confirmou que isso ocorre.

"Sob as atuais sanções norte-americanas, é impossível devolver o dinheiro", disse à Reuters uma autoridade do país. "Qualquer permissão referente aos fundos precisa ser estritamente autorizada pelos EUA."

A autoridade afirmou que Seul "discutiu a rota pela Suíça como uma outra forma possível para a liberação (de fundos)", mas acrescentou que "os EUA não têm sido positivos em relação a essas propostas".

Não ficou claro o motivo pelo qual os EUA não podem fornecer aprovação específica para essas transações.

Uma autoridade do Ministério das Finanças do Japão se recusou a comentar, encaminhando o assunto para autoridades iranianas.

O CBI não respondeu a pedidos por comentários.

Quando questionado sobre se as transferências de fundos eram permitidas e se autorizações específicas seriam concedidas, um porta-voz do Tesouro norte-americano disse que os EUA estão comprometidos com a entrega de bens e serviços humanitários ao povo iraniano.

Entidades de fora dos EUA podem realizar exportações ou reexportações de alimentos, produtos agrícolas, medicamentos e equipamentos médicos para o Irã, fora da jurisdição norte-americana, sem autorizações adicionais, desde que as transações envolvendo o CBI sejam consistentes com as diretrizes dos EUA, acrescentou o porta-voz.

Um porta-voz do Departamento de Estado norte-americano disse que os EUA seguem comprometidos com o sucesso do SHTA.

"A política dos EUA nunca foi, e nem é agora, ter como alvo o comércio humanitário com o Irã", afirmou.

UM NEGÓCIO VIA SUÍÇA

O governo da Suíça disse na segunda-feira que uma farmacêutica do país concluiu a primeira transação por meio do novo canal de comércio humanitário com o Irã, acrescentando que mais transações deverão ocorrer.

A Secretaria de Estado para Assuntos Econômicos (SECO) disse à Reuters que o SHTA precisava de "transferências regulares de fundos iranianos do exterior para seu funcionamento", e acrescentou que autoridades norte-americanas garantiram que apoiariam essas transferências.

"Estamos em negociações com os EUA e outros parceiros em relação a esse assunto. No entanto, não podemos divulgar informações sobre transferências individuais", disse a SECO, sem fornecer mais detalhes.

A SECO também não comentou sobre como a primeira transação confirmada foi financiada.

Uma autoridade iraniana, falando em condição de anonimato, disse que Teerã esteve em contato com países onde possui fundos para tentar transferir o dinheiro por meio da iniciativa suíça.

"Esses países abordaram os EUA para garantir a aprovação para as transferências, mas não tiveram sucesso", disse a autoridade.

O banco suíço BCP é a única instituição financeira que se comprometeu com o SHTA até o momento, concordando em receber fundos iranianos através do esquema, segundo as fontes.

O BCP não respondeu a pedidos por comentários.

As fontes disseram que grandes casas globais de trading também estão dispostas a fornecer commodities agrícolas para o Irã por meio do esquema, mas apenas quando tiverem a certeza de que as transações estão livres de riscos de sanção.

"As grandes casas de trading só vão trabalhar com um sistema formal de pagamento aprovado pelos EUA", disse um operador de grãos da Europa.

MILHO BRASILEIRO

Somando-se às dificuldades do Irã para obter alimentos, as importações de milho do Brasil pelo país despencaram. A República Islâmica foi o segundo maior comprador de milho brasileiro em 2019, mas entre janeiro e junho as importações recuaram para cerca de 339 mil toneladas, ante 2,3 milhões de toneladas no ano anterior, segundo dados do governo.

Teerã está enfrentando um aumento na concorrência pelo milho do Brasil, especialmente de Taiwan. Os vendedores brasileiros também enfrentam dificuldades para encontrar bancos internacionais dispostos a processar as transações em função dos riscos de sanção, de acordo com sete fontes do mercado brasileiro.

Os operadores tentaram usar pequenos bancos locais para as transações relacionadas ao Irã, disseram as fontes. Eles também passaram a usar o euro, para evitar movimentações em dólar que resultariam em alertas para o Tesouro norte-americano.

O Irã paga 10 dólares a mais por tonelada, em relação a outros compradores, para compensar pelos desafios logísticos e financeiros, segundo as fontes brasileiras.

"Por causa das políticas hostis dos EUA, nós tivemos que reduzir as importações", disse Mehdi Ansari, presidente da trading iraniana Tejari Ansari Group.

O Tesouro dos EUA se recusou a comentar quando questionado sobre a queda nas vendas de milho do Brasil para o Irã.

Compradores iranianos realizaram neste mês compras antecipadas de cerca de 600 mil toneladas de milho do Brasil para o segundo semestre do ano, com expectativas de que os pagamentos ocorram após o embarque das cargas, de acordo com as fontes. No entanto, os vendedores poderão desviar as embarcações para outros compradores caso o Irã não tenha como pagar.

Traders brasileiros também estão utilizando acordos de troca com o Irã --recebendo ureia do país asiático para ser usada como fertilizante, por exemplo, em troca de milho, ainda segundo as fontes.

Carlos Millnitz, CEO da Eleva Química, disse à Reuters que esses acordos não violam as sanções, já que não há movimentação de dinheiro, mas "tornam o milho mais caro para o Irã".

Ele acrescentou, porém, que sua empresa tem evitado navios com bandeira iraniana para as trocas, depois que duas dessas embarcações ficaram "presas" em um porto brasileiro no ano passado, quando a Petrobras se recusou a reabastecê-los por causa das sanções norte-americanas.

(Reportagem adicional de Daphne Psaledakis em Washington, Tetsushi Kajimoto em Tóquio, Michael Shields em Zurique, Michael Hogan em Hamburgo e Karl Plume em Chicago)