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Como a covid-19 varreu instalações brasileiras da JBS, maior produtora de carne do mundo

Ana Mano

São Paulo

08/09/2020 09h06

A JBS, maior produtora de proteína animal do mundo, prometeu manter as pessoas alimentadas durante a pandemia do novo coronavírus. Para tanto, a empresa contratou mais de 15 mil colaboradores no Brasil este ano para produzir cortes de frango, suínos e bovinos, muitos deles para exportação. O lucro líquido da gigante da carne foi de R$ 3,4 bilhões no segundo trimestre, quase o dobro do que os analistas previam.

Mas essa bonança cobrou seu preço: mais de 4.000 funcionários da JBS no Brasil testaram positivo para o coronavírus e pelo menos seis morreram de covid-19, de acordo com dados de autoridades locais de saúde pública e informações coletadas pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) e por três sindicatos que investigam a empresa. Os surtos atingiram pelo menos 23 fábricas da empresa em sete estados, segundo autoridades de saúde, integrantes do MPT e sindicatos, o que ajudou a disseminar a doença no maior país da América do Sul.

A JBS, com sede em São Paulo, nega qualquer tipo de irregularidade. A empresa defende sua resposta à pandemia no Brasil, dizendo que proteger a saúde de seus trabalhadores está entre as "prioridades máximas". Quando perguntada sobre os surtos em suas dependências, a JBS se recusa a comentar infecções e mortes entre seus trabalhadores e afirma apenas que compartilha os dados da covid-19 com as autoridades competentes.

Com mais de 4,1 milhões de casos confirmados, o Brasil tem o terceiro pior surto de covid-19 do mundo, atrás apenas de Estados Unidos e Índia. Quase 127 mil pessoas já morreram. Neste contexto, algumas fábricas da JBS se tornaram foco de disseminação comunitária, segundo informações de autoridades de saúde e dados do MPT.

O primeiro contato da JBS com o vírus ocorreu em suas operações nos Estados Unidos em março, quando a empresa cortou a produção em uma unidade de carne bovina da Pensilvânia depois que alguns colaboradores apresentaram sintomas semelhantes aos da gripe. O fechamento temporário de duas instalações da JBS devido a grandes surtos, no Colorado e em Minnesota, também foi notícia.

Menos conhecidas no exterior são as dificuldades da JBS no Brasil, onde a empresa se tornou um ímã para processos judiciais. Desde abril, o MPT entrou com ao menos 18 ações civis públicas em varas trabalhistas de seis estados. O objetivo é forçar a JBS a implementar protocolos mais rígidos de proteção a trabalhadores. Os contenciosos dizem respeito a pelo menos 17 fábricas da companhia onde ocorreram surtos de coronavírus.

Outras empresas do setor também lutam contra o vírus nas áreas de produção, que são tipicamente frias e têm baixa circulação de ar. Concorrentes como a Marfrig e a BRF, entretanto, fizeram acordos com o MPT para testar rotineiramente os seus trabalhadores. Os acordos seriam uma forma de tentar minimizar o contágio e continuar operando com mais segurança.

A JBS, por outro lado, tem resistido aos apelos do MPT para realizar esses testes em massa, que não são expressamente exigidos pela legislação brasileira. "Não há, por parte do poder público, órgãos regulatórios ou de saúde, qualquer determinação que trate da necessidade ou obrigatoriedade da realização de testes pelo setor frigorífico e, portanto, que deva ser adotado pela companhia", disse a JBS em nota.

A Reuters entrevistou mais de 30 pessoas com conhecimento sobre os surtos nas unidades da empresa pelo Brasil, incluindo procuradores do MPT, dirigentes sindicais, trabalhadores e atuais e ex-funcionários da área de saúde do governo. A Reuters também analisou decisões de juízes trabalhistas referentes à empresa, bem como informações apresentadas pelo MPT como parte das investigações em face da JBS.

Segundo o MPT e auditores do trabalho vinculados ao Ministério da Economia, o que se descobriu após a inspeção em ao menos duas fábricas da JBS é preocupante. Ao término de diligências recentes, eles afirmaram que o vírus se espalhou entre empregados da JBS porque a empresa não testou sua força de trabalho, não forneceu aos funcionários máscaras em número suficiente, e não isolou rapidamente os trabalhadores com teste positivo ou com sintomas de covid-19.

Desde o início da pandemia, o MPT quer que a empresa faça os testes e endureça os protocolos de quarentena para casos suspeitos, além de pleitear o fornecimento de equipamentos de proteção individual adequados e maior espaçamento entre os trabalhadores nas linhas de produção. Na maioria das ações civis públicas contra a JBS, o MPT também pede o pagamento de danos morais coletivos entre R$ 3 milhões de R$ 20 milhões. O dinheiro seria usado para custear projetos sociais ou outros, preferencialmente na área da saúde, para o auxílio às instituições no combate à covid-19.

"A JBS é a líder do segmento dela no mundo e a gente espera de um líder exemplo", disse Heiler Natali, procurador do MPT no Paraná. "Ela não quer testar e assumir a sua responsabilidade." As disputas judiciais envolvendo a empresa resultaram na paralisação temporária de seis fábricas da JBS no Brasil neste ano, segundo o MPT. Já a JBS diz que apenas cinco de suas unidades foram afetadas pelas paralisações, e que a outra citada pelo MPT nunca foi fechada.

A sexta fábrica fica em Três Passos, no Rio Grande do Sul, onde a empresa produz cortes de suínos. Em 22 de junho, um juiz do trabalho determinou que a fábrica afastasse, com remuneração e por 14 dias, todos os funcionários que tiveram resultado positivo para covid-19, além de ordenar o teste dos remanescentes. Cerca de 40% das pessoas naquela instalação, em que trabalham 1.017 pessoas, testaram positivo para coronavírus. Um colaborador morreu, de acordo com o MPT.

A JBS prefere não comentar litígios pendentes. A empresa defende as medidas que vem tomando e diz que contratou consultores de renome para assessorá-la em protocolos de saúde, inclusive com respeito ao distanciamento físico entre as pessoas nas fábricas. Em julho, a JBS providenciou testes em massa para trabalhadores em uma unidade de suínos na cidade de Dourados, no Mato Grosso do Sul, por meio de um acordo fechado com o MPT daquele estado.

Em 14 de agosto, o CEO Gilberto Tomazoni disse que sentia "muito orgulho" da resposta da JBS à pandemia, informando que a empresa investiu 400 milhões de dólares para proteger os trabalhadores e as comunidades ao redor de suas fábricas. Ao todo, a JBS opera 135 unidades no Brasil, onde produz carne bovina, de frango, suína e couros, além de manter escritórios e centros de distribuição. Essas operações representam cerca de um quinto da sua receita global. A JBS emprega 240 mil pessoas em todo o mundo, incluindo 135 mil no Brasil.

Promessas descumpridas

O coronavírus é a mais recente dor de cabeça da JBS, que nos últimos anos foi abalada por escândalos de corrupção e segurança alimentar, este último por causa da Operação Carne Fraca. Esses eventos depreciaram o preço de suas ações, levaram a multas pesadas, e atrasaram uma cobiçada listagem de ações dos Estados Unidos.

Mas a demanda global por proteína animal impulsionou a JBS; e a empresa registrou lucros recordes no ano passado. Quando o vírus surgiu no início de 2020, o incentivo era alto para manter funcionando suas fábricas no Brasil. Primeiro porque as paralisações em suas unidades nos Estados Unidos levaram a cortes de produção nesse mercado-chave. Depois porque a moeda brasileira perdeu valor, tornando a carne produzida no Brasil mais barata para os compradores estrangeiros. Suas exportações de carne bovina para a China, por exemplo, aumentaram 53% em dólares no segundo trimestre. A JBS vende em 190 países.

Em uma teleconferência em março, o principal executivo da JBS prometeu que seguiria produzindo alimentos, mas disse que cuidar da saúde dos colaboradores seria prioridade. Ele anunciou medidas para as unidades da JBS, incluindo afastamento remunerado de funcionários em grupos de risco, desinfecção das instalações industriais, e aumento do espaçamento nos ônibus da empresa que transportam os trabalhadores. Tomazoni disse que essas ações poderiam não ser implementadas em todos os países da mesma forma, devido às leis locais.

Além das medidas gerais, ele comentou que a JBS tomaria a temperatura dos colaboradores no Brasil, os vacinaria contra o H1N1 para aumentar sua imunidade, e aumentaria o espaçamento de empregados nas áreas comuns das fábricas.

No Brasil, a JBS nem sempre cumpriu as próprias promessas, de acordo com os autos dos processos a que responde, procuradores do MPT, sindicatos e empregados ouvidos pela Reuters.

Segundo o "Termo de Interdição" relativo à unidade de frango de Ipumirim, em Santa Catarina, descobriu-se que a JBS permitiu que pelo menos uma pessoa com diagnóstico confirmado de covid-19 permanecesse no trabalho. O termo é assinado por três auditores fiscais vinculados à pasta da Economia, e foi lavrado em 18 de maio. Segundo relatado por eles, a JBS também manteve em ação ao menos 42 funcionários com doenças crônicas como hipertensão. Sete dessas pessoas posteriormente testaram positivo para covid-19.

Os auditores encontraram ainda 86 casos confirmados de covid-19 em Ipumirim depois de revisar os registros médicos dos empregados, representando 6% da força de trabalho ali. A JBS não quis comentar as conclusões dos auditores.

Bem longe de Santa Catarina, uma mulher do setor de desossa da JBS em Colíder, em Mato Grosso, tornou-se o primeiro caso de covid-19 confirmado naquele município em maio, segundo informações de autoridades locais de saúde citadas por procuradores numa ação civil pública movida contra a empresa pelo MPT matogrossense. Dos 602 funcionários da planta, 84 tiveram teste positivo para coronavírus até 17 de junho, uma taxa de infecção quase 12 vezes maior do que a da própria cidade, alegaram os procuradores. A JBS negou irregularidades em Colíder. A empresa disse que seguiu as regras federais para operar durante a pandemia, bem como os conselhos de especialistas para lidar com eventuais surtos.

Ainda assim, em uma unidade de carne bovina na cidade de Araputanga, também em Mato Grosso, os procuradores alegaram "absoluto descontrole epidemiológico". Eles se referiam a 51 casos confirmados de covid-19 entre 1.070 empregados ali, conforme os autos da ação civil pública que corre no estado desde 4 de agosto relativa a esta planta. A JBS refutou o dado de infecções de Araputanga, mas não forneceu mais detalhes.

"Ombro a ombro"

Sem que o Ministério da Saúde contabilize o número de contaminações por setor, o total de infectados pelo coronavírus em frigoríficos é desconhecido no Brasil —líder mundial na exportação de frango e carne bovina. Segundo estimativas da Contac-CUT, que congrega trabalhadores nas indústrias de alimentos, até 25% dos cerca de 500 mil empregados do setor poderiam ter sido infectados. A ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal), que representa as empresas de suínos e aves, disse que a estimativa não possui "bases técnicas" e pode ser considerada "desinformação".

Enquanto isto, o MPT entende que a JBS está atrás de seus rivais no que se refere a controlar a contaminação pelo novo coronavírus entre os seus colaboradores. Nos últimos meses, competidores diretos como a Marfrig e a BRF assinaram "Termos de Ajuste de Conduta" com o MPT, o que lhes permitiu continuar produzindo dentro da nova realidade da pandemia. O MPT diz ter negociado TACs com 30 empresas, cobrindo um total de 98 unidades que empregam 185 mil pessoas no Brasil. Os TACs obrigam as companhias a aplicar e custear testes rotineiramente. A ideia é detectar a doença de maneira rápida e impedir sua propagação no ambiente de trabalho do frigorífico.

A Marfrig começou a testar todos os seus 18 mil funcionários em 1º de junho. A BRF, que emprega cerca de 90 mil pessoas no Brasil e é a maior exportadora de frango do país, disse à Reuters que realizou 11 mil testes somente em sua fábrica de Toledo, no Paraná.

Ao passo que a JBS rechaça os TACs e opta por defender sua posição nos tribunais, o MPT alega que usa os meios possíveis para tentar forçar uma mudança de postura, mesmo que isto signifique obrigar a JBS a fechar unidades para se readequar. "As medidas de paralisação de atividades são excepcionais, mas muitas vezes a única alternativa viável para a preservação da saúde dos trabalhadores e contenção do crescimento exponencial de casos nos estabelecimentos", disse Priscila Schvarcz, do MPT no Rio Grande do Sul. Ela toca uma ação civil pública contra a JBS relacionada à unidade de Passo Fundo, que foi fechada por quase um mês, a partir de 24 de abril, depois que alguns trabalhadores adoeceram com covid-19. Pelo menos 305 empregados testaram positivo para coronavírus após dois surtos lá, disse Schvarcz.

A JBS informou à Reuters que prefere não assinar um TAC com o MPT porque cumpre todas as normas estabelecidas pelo governo federal para operar na pandemia. A empresa disse que vai continuar defendendo seus "robustos" protocolos de saúde na Justiça.

A JBS teve algum sucesso com sua estratégia. Em 3 de julho, uma desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho ordenou a reabertura de unidade em Passo Fundo, dizendo que se ficasse fechada seria "rompida toda a cadeia produtiva, com prejuízo inequívoco não só dos empregos... como da arrecadação de impostos, afora, desabastecer a população em geral".

Mas no chão da fábrica a realidade é percebida de outra maneira.

Colaboradores da JBS disseram à Reuters que temiam ficar doentes, mas não podiam deixar de trabalhar porque precisavam do salário. Duas pessoas em Santa Catarina —uma em Ipumirim e outra em Nova Veneza — disseram em julho que a empresa fornecia a elas e a seus colegas apenas uma máscara facial descartável; pedindo aos empregados que as usassem por cinco dias. O mesmo problema foi relatado em relação a Dourados e Passo Fundo, segundo o MPT e um advogado que representa trabalhadores da fábrica sul-matogrossense.

"Meu colega pegou o vírus", disse uma pessoa que trabalha em Ipumirim, falando sob condição de anonimato. "Nós realmente trabalhamos ombro a ombro e a empresa se recusou a nos testar."

A JBS não quis discutir as alegações sobre as máscaras, nem comentou sobre a questão da proximidade dos trabalhadores nas linhas de produção.

Contaminação comunitária

Os surtos em algumas unidades da JBS afetaram comunidades inteiras. Em São Miguel do Guaporé, uma pequena cidade no estado de Rondônia, 266 trabalhadores da empresa haviam sido infectados até 6 de junho, representando mais de 60% dos casos da cidade, segundo o MPT na região. Diante de tal fato, o MPT obteve uma ordem judicial em 26 de maio para fechar temporariamente as instalações e conter o contágio. Em sua decisão, o juiz trabalhista Wadler Ferreira afirmou que a unidade da JBS em São Miguel do Guaporé "é a principal fonte de contaminação e propagação do vírus neste pequeno município", referindo-se à maior empregadora local. À época, 900 pessoas trabalhavam na planta.

Em Mato Grosso do Sul, os empregados da unidade em Dourados começaram a adoecer por volta de maio. Em vez de buscar uma ordem judicial para fechar a fábrica, o procurador do Trabalho Jeferson Pereira fechou um acordo envolvendo a JBS e autoridades de saúde locais, o que resultou na realização de testes em massa em julho, pagos pelo estado. Quase um quarto da força de trabalho de 4.300 pessoas testou positivo, desencadeando um dos piores surtos comunitários no Mato Grosso do Sul.

Dourados, um município com quase 223 mil habitantes, tinha 6.058 casos de covid-19 e 82 óbitos até 7 de setembro, segundo o Ministério da Saúde. Além da JBS, outros frigoríficos, inclusive a BRF, registraram surtos em fábricas na cidade. "Toda a pandemia em Dourados se iniciou através de frigoríficos. Isto é um fato epidemiológico", disse Julio Croda, epidemiologista e ex-chefe do departamento federal de imunização e doenças transmissíveis do Ministério da Saúde. A ABPA refuta a avaliação de Croda, e diz que a indústria sempre agiu para controlar o coronavírus.

Sem se sentir protegidos, em 14 de julho os trabalhadores da JBS em Dourados, representados por um sindicato, entraram com uma ação para obrigar a empresa a pagar as despesas de saúde dos funcionários que contraíram o coronavírus. Não há decisão de mérito ainda. Com sempre, a JBS defendeu suas ações. Sobre o contágio em Dourados, a empresa disse que implementou o protocolo de prevenção com rigor e teve "um ótimo resultado... no controle da covid-19 nessa planta".

(Reportagem de Ana Mano em São Paulo, com reportagem adicional de Tom Polansek em Chicago.)